quarta-feira, 11 de abril de 2018

Lançamento do livro "Breve História da Psiquiatria Mineira"




Lançamento de livro: "Breve História da Psiquiatria Mineira", 8 de maio de 2018, às 19,00 horas, na Livraria Leitura do Shopping Pátio Savassi, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

Viajar pela história da psiquiatria mineira passa por um dos mais fascinantes roteiros da medicina. Desde a era pré-asilar, passando pelo período manicomial, o advento da fase hospitalocêntrica da primeira metade do século XX, chega-se à época de ouro da psiquiatria exercida no Hospital Galba Velloso da década de 1960, quando grandes conquistas, embaladas pela revolução da psicofarmacologia, nos legaram uma substancial humanização da especialidade. Ao impacto provocado pelas teorias e práticas psico e sociogenéticas das décadas de 1970/80, sucedeu a era das neurociências, cujo voo propiciou um progresso jamais visto na prática psiquiátrica.

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A história da psiquiatria mineira é fascinante por diversas razões: é considerada precursora da psiquiatria nacional, passou por diferentes etapas vinculadas à ciência de seu tempo, sofreu influências diretas de diversos movimentos científicos e filosóficos, recebeu influência de movimentos políticos e sociais com os quais se relacionou, ora de forma pacífica, ora turbulenta.

Seu itinerário nunca foi fácil.

A leitura desta viagem por quase dois séculos de caminhada nos transporta para tempos distantes dos atuais, para locais onde habitavam os loucos, os alienados e, mais tarde, os doentes mentais. Tempos depois, o psiquiatra lidava com o sujeito e seu discurso nos divãs de consultórios. Mais tarde, surgiram detalhados exames e extensos questionários nos indivíduos submetidos às consultas, a entrevistas clínicas para ensino e nas pesquisas.

Viajar pela história da psiquiatria mineira não é somente uma viagem no tempo, é a busca constante e intensa pela humanização assistencial e pela reinserção do doente mental na sociedade que não o compreendera e não soubera lidar com sua peculiaridade. Esta viagem passa por momentos de percalços, compensada pelos inumeráveis sucessos e momentos de júbilo que se sucedem às grandes descobertas.

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"Há livros que são necessários. E há aqueles que, além de necessários, propiciam um grande prazer ao leitor pelo estilo literário agradável, fluido e envolvente que emana de sua tessitura.
Sem dúvida, “Breve História da Psiquiatria Mineira”, do Prof. Antônio Carlos Corrêa, é obra indispensável para todos aqueles que amam a Psiquiatria – não somente como ciência cujo objeto de estudo é o transtorno mental – mas também como especialidade médica estruturada de modo persistente, paciente, heroico e inserida num mundo sujeito a constantes e vertiginosas transformações culturais, científicas e políticas.


Com efeito, podemos acompanhar, capítulo por capítulo e página por página, os principais eventos científicos mundiais – com as consequentes repercussões regionais – que forjaram, ao longo do tempo, continua e sucessivamente as faces extremamente mutáveis e dinâmicas da Psiquiatria como especialidade médica, constituindo-se ela própria como um produto de grandes conquistas e sofridas vicissitudes.


A narrativa histórica, distante daquela aridez própria dos livros que se propõem a catalogar e registrar muitos dados historiográficos, revela-se envolvente, fluida e cativante, levando o leitor a percorrer a saga da psiquiatria mineira não só como expectador, mas também como protagonista das sucessivas mudanças, conflitos, lutas e conquistas que moldaram e estabeleceram a sua identidade. É também um texto que toca o coração, quando relembramos dos velhos e saudosos mestres, com os quais tanto aprendemos e cuja sabedoria reverenciamos.


A qualidade da obra não chega a surpreender, por ser o autor, Prof. Antônio Carlos Corrêa, um pesquisador minucioso, clínico respeitado, pioneiro em várias áreas do conhecimento psiquiátrico em Minas Gerais e dotado de espírito de educador nato e indômito. Em suma, “Breve História da Psiquiatria Mineira” por tudo isso parece obra definitiva, sólida e que a cada releitura proporciona um novo prazer."

Gustavo Fernando Julião
Psiquiatra em Belo Horizonte (MG)
                                                             

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

José Guilherme Merquior contesta Michel Foucault




José Guilherme Merquior (1941-1991) foi diplomata, sociólogo, ensaísta e crítico literário brasileiro nascido no Rio de Janeiro. Foi um dos maiores pensadores brasileiros da segunda metade do século XX. O ex-ministro da Educação, Eduardo Portella, o definiu como “a mais fascinante máquina de pensar do Brasil pós-modernista - irreverente, agudo, sábio”, O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss o considerava ‘um dos espíritos mais vivos e mais bem informados de nosso tempo”.
Membro da Academia Brasileira de Letras, escritor prolífico, erudito, polímata, humanista, Merquior estudou no Brasil e no exterior, tendo se doutorado em sociologia pela London School of Economics sob a orientação de Ernest Gellner, tendo sofrido forte influência da escola alemã e austríaca. Diplomata, serviu em Berlim, Londres, Paris e Montevidéu e foi embaixador no México e Representante Permanente do Brasil na Unesco. Foi amigo de Roberto Campos, de quem sofreu grande influência intelectual. Campos afirmava que, na sociologia, Merquior somente pode ser comparado a Gilberto Freyre.
Escrevia em inglês e francês com a mesma fluência exibida com o português. Autor de vasta obra, um de seus mais importantes trabalhos foi “Michel Foucault, ou o nihilismo de cátedra”, de 1985, escrito em inglês e publicado inicialmente na Inglaterra, uma verdadeira obra-prima. Neste livro faz uma das mais devastadoras críticas às teorias do filósofo francês Michel Foucault. Reproduzo abaixo o Capítulo 2 desta seminal obra, necessária para a compreensão de como o filósofo francês “reescreveu” a história da loucura para adaptá-la aos seus princípios marxistas-estruturalistas-gramcistas, que muitos consideram ter representado uma verdadeira fraude intelectual. Dada a influência de Foucault sobre parte da intelectualidade brasileira, particularmente aquela das universidades, aqui vai este preclaro texto de Merquior.


 II. A GRANDE INTERNAÇÃO, OU DU CÔTÉ DE LA FOLIE (Capítulo 2)

O primeiro livro influente de Foucault, publicado em 1961, foi um alentado volume intitulado História da Loucura na Idade Clássica. Nessa obra, Foucault demonstra que o “ discurso sobre a loucura" conheceu no Ocidente quatro fases distintas desde a Idade Média.
Enquanto no medievo a demência era vista como sagrada, na Renascença ela passou a ser identificada com uma forma especial de irônica razão superior — a sabedoria da loucura, do famoso elogio de Erasmo, também presente nos personagens enlouquecidos de Shakespeare ou no cavaleiro tantas vezes sublime de Cervantes. A ambivalência pré-moderna em relação à insânia foi bem expressa no topos da Nau dos Insensatos, que prendeu a imaginação popular na Renascença. Por um lado, por meio do simbolismo da Nau dos Insensatos, o Ocidente pré-moderno exorcizava a loucura, “despachando" seus malucos. Por outro lado, ao que parece, essas embarcações eram vagamente vistas como “naus de peregrinação, navios altamente simbólicos doidos em busca da razão”. A loucura, que não era temida socialmente, e que muitas vezes (como na sátira humanista ou na pintura de Brueghel) desnudava o absurdo do mundo, apontava para um reino de significação além da razão — e assim a loucura era expulsa mas não amputada da sociedade: ao atribuir um papel funcional à insânia, o espírito renascentista se mantinha bastante familiarizado com ela. Eram muitas as pontes, sociais e intelectuais, entre a razão e o desvario. Para o homem do Renascimento, a loucura participava da verdade. De repente, por volta de meados do século XVII, "a loucura deixou de ser — nos Iimites do mundo, do homem e da morte — uma figura escatológica". O navio imaginário transformou-se num lúgubre hospital, e a Europa converteu seus leprosários, há muito desertos, em hospícios. Desde o fim das Cruzadas, o declínio da lepra havia esvaziado os lazaretos — mas agora leprosos morais seriam seus internos:

Ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental. As margens da comunidade, às portas das cidades, abrem-se como que grandes praias que esse mal deixou de assombrar, mas que também deixou estéreis e inabitáveis durante muito tempo. Durante séculos, essas extensões pertencerão ao desumano. Do século XVI ao XVII, vão esperar e solicitar, através de estranhas encantações, uma nova encarnação do mal, um outro esgar de medo, mágicas renovadas de purificação e exclusão. (...) A lepra se retira, deixando sem utilidade esses lugares obscuros e esses ritos que não estavam destinados a suprimi-la, mas sim a mantê-la a uma distância sacramentada, a fíxá-la numa exaltação inversa. Aquilo que sem dúvida vai permanecer por muito mais tempo que a lepra, e que se manterá ainda numa época em que, há anos, os leprosários estavam vazios, são os valores e as imagens que tinham aderido à personalidade do leproso; é o sentido dessa exclusão, a importância no grupo social dessa figura insistente e temida que não se põe de lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado.[10]

As frases que acabamos de citar foram extraídas do primeiro capítulo de História da Loucura. Dão uma boa ideia do estilo de Foucault, mescla peculiar de erudição e patos. O brilho literário de sua prosa demonstra aquilo que ele quer ao mesmo tempo narrar e denunciar: o Grand Renfermement {segundo a linguagem barroca da época), a Grande Internação, que procurou domar a insanidade pela segregação dos loucos como categoria associal. Isto porque, durante a "idade clássica", no sentido francês (e foucaldiano) (SIC), que corresponde aos séculos XVII e XVIII, a loucura foi drasticamente isolada da saúde mental. Os lunáticos não eram mais expulsos da sociedade como pessoas "diferentes". Passaram a ser confinados em locais especiais, e tratados em conjunto com outros tipos de transviados — mendigos e criminosos, até mesmo desocupados. Na visão de Foucault, a ética puritana do trabalho não está muito longe de ser apenas uma espécie num gênero: a nova gravidade da burguesia clássica. Para a Renascença, a loucura ainda não constituía uma doença; na idade clássica, ela se tornou uma moléstia ociosa. A razão racionalista lançava sobre a loucura uma maldição "patológica", carregada de conotações éticas.
O clássico hospital psiquiátrico não tinha objetivos psicoterapêuticos: sua preocupação principal, diz Foucault (capítulo VI), era "apartar ou 'corrigir’”. Mas, fora dos hospitais, a idade clássica deu expansão a muitas "curas físicas" da loucura, notáveis por sua brutalidade disfarçada em ciência. Os mais graves resultados derivavam de tentativas tão odientas quanto engenhosas de procrastinar ou destruir a "corrupção dos humores". A loucura, vista como uma forma de deterioração corporal, era atacada por métodos que procuravam ou desviar, externamente, substâncias corruptas ou dissolver, internamente, as substâncias corruptoras. Entre as primeiras estava o Oleum cephalicum, de um certo doutor Fallowes. Acreditava ele que na loucura "vapores escuros tampam os vasos muito finos pelos quais os espíritos animais devem passar. Com isso, o sangue se vê privado de direção, entupindo as veias do cérebro, onde estagna, a menos que seja agitado por um movimento confuso que ‘embaralha as ideias'. O Oleum cephalicum tem a vantagem de provocar 'pequenas pústulas na cabeça', untadas com óleo para impedir que sequem, de modo a permanecer aberta a saída 'para os vapores negros estabelecidos no cérebro'. Mas as queimaduras e cauterizações por todo o corpo produzem o mesmo efeito. Supõe-se mesmo que as doenças de pele, como a sarna, o eczema e a varíola, poderiam acabar com um acesso de loucura. Nesse caso, a corrupção abandona as vísceras e o cérebro a fim de espalhar-se pela superfície do corpo e libertar-se no exterior. Ao final do século, adquiriu-se o hábito de inocular sarna nos casos mais renitentes de mania. Em sua Instruction de 1785, Doublet, dirigindo-se aos diretores de hospitais, recomenda, caso as sangrias, banhos e duchas não acabem com a mania, que recorram aos 'cautérios, aos sedenhos, aos abscessos superficiais, à inoculação da sarna'.
Nem todos os tratamentos durante a idade clássica eram tão cruéis e tão tolos. Ao lado das “terapias” físicas, havia muitas receitas morais, bem documentadas no fartamente ilustrado capítulo “Médicos e doentes” de História da Loucura — verdadeira façanha de erudição descritiva. Entretanto, o ponto principal ressalta cristalino: no Ocidente clássico, nos albores da sua modernidade, a loucura tornou-se apenas uma doença — perdeu a dignidade de ser vista como um desvario significativo.
Então, em fins do século XVIIl e durante a maior parte do século seguinte, as reformas psiquiátrícas, que tiveram como pioneiros o quaker William Tuke, no York Retreat, e Philippe Pinel, em Paris, isolaram os loucos da companhia de mendigos e criminosos. Segundo a visão marxista de Foucault, os pobres deixaram de ser confinados porque o florescente industrialismo necessitava de mão-de-obra e de um exército de reserva. Quanto aos dementes, definidos como pessoas enfermas, seres humanos que padeciam de um desenvolvimento psíquico bloqueado, foram fisicamente libertados (Pinel quebrou as correntes que os prendiam no nosocômio de Bicêtre, durante o Terror, como um gesto simbólico) e colocados sob um regime educacional benigno. No entanto Foucault está convencido de que isso só foi feito para melhor capturar-lhes a mente — tarefa confiada à instituição do asilo. Uma vez no asilo, o insano, agora um paciente posto sob a autoridade do discurso psiquiátrico, passa por um “julgamento" profundamente psicológico, do qual "nunca se é libertado (...) exceto (...) pelo remorso[11] — a tortura moral torna-se a lei da tirania da razão sobre a loucura. No mundo do hospício, argumenta Foucault, antes das reformas psiquiátricas de Pinel e outros, os doidos na verdade gozavam de mais liberdade do que as terapias modernas lhes permitem, uma vez que o tratamento pela “internação clássica” não visava a mudar-lhes a consciência. Seus corpos estavam presos por correntes, mas suas mentes tinham asas — mais tarde cortadas pelo despotismo da razão. Assim, o pensamento ocidental passou a separar firmemente a razão da desrazão. Nas palavras de Foucault, a conversão da loucura em doença, no fim do século XVIII, “rompeu o diálogo” entre a razão e a insânia. "A linguagem da psiquiatria, (...) um monólogo da razão sobre a loucura, só veio a ser estabelecida com base em tal silêncio." A partir daí, "a vida da desrazão" só brilhou nos fulgores da literatura dissidente, como a de Hölderlin, Nerval, Nietzsche ou Artaud. Quanto à psiquiatria humanitária, na esteira de Pinel e Tuke, ela representou nada menos que “um gigantesco encarceramento moral". Além do mais, o asilo espelha toda uma estrutura autoritária — a da sociedade burguesa. Constitui "um microcosmo no qual estavam simbolizados a vasta estrutura da sociedade burguesa e seus valores: relações Família-Criança, centradas no tema da autoridade paterna: relações Transgressão-Castigo, centradas no tema da justiça imediata: relações Loucura-Desordem, centradas no tema da ordem social e moral. Era dessas relações que o médico derivava seu poder de curar”.[12]
Por fim, em nossa própria época, surgiu uma quarta maneira de conceituar a relação razão/loucura. Freud obscureceu a distinção entre saúde mental e insânia ao considerar que a polaridade entre as duas coisas era mediada pelo fenômeno da neurose. No entanto, apesar de sua decisiva suplantação da mentalidade do asilo, Freud conservou um traço autoritário crucial ao entregar os mentalmente perturbados ao poder dos médicos da alma.
Por certo, História da Loucura abre uma legítima área de pesquisa: a investigação dos pressupostos culturais subjacentes às diferentes maneiras históricas de lidar com uma área altamente perturbadora do comportamento humano. Numa crítica simpática ao livro, o imaginativo epistemólogo Michel Serres disse ser ele uma “arqueologia da psiquiatria”, provavelmente uma das primeiras vezes cm que o termo foi empregado com referência a Foucault (que o usou, ele próprio, no subtítulo ou título de seus três livros seguintes). Para Serres, História da Loucura representa para a cultura da idade clássica “muito precisamente” (SIC) o que O nascimento da tragédia, de Nietzsche, representou para a cultura grega antiga: lança luz sobre o elemento dionisíaco reprimido sob a ordem apolínea — “on sait enfin de quelles nuits les jours sont entoures”, conclui ele, em lírico entusiasmo.[13] Naturalmente, a cálida acolhida que Foucault recebeu do movimento da antipsiquiatria (Laing et al.) foi uma resposta direta a esse componente orgiástico. Nos Estados Unidos, os críticos logo notaram o parentesco, em espírito, se não em tom ou método, com a obra de Norman Brown (Life Against Death, 1959) e seu eloquente hino ao id primitivo.[14] Além disso, História da Loucura gerou toda uma prole de justificações da psicose, todas escritas com forte ânimo “contracultural” a mais conhecida das quais continua a ser o Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (1972), de Gilles Deleuze e Felix Guattari.
Ao examinarmos o primeiro estudo histórico-filosófico importante de Foucault, cabe-nos perguntar: a história contada por ele é acurada? Há quem diga que fazer essa pergunta é um equívoco, pois Foucault veio a concordar inteiramente com a rejeição, por Nietzsche, das pretensões da história a alcançar uma objetividade neutra. Em “Nietzsche, genealogia, história" (1971),[15] ele despeja um desprezo nietzscheano sobre “a história dos historiadores", que, buscando a neutralidade, imaginam um implausível “ponto de apoio fora do tempo". Quão mais sábia, diz Foucault, é a “genealogia" de Nietzsche, que "não teme ser um conhecimento perspectivado": ela assume ousadamente "o sistema da sua própria injustiça".
Entretanto, afirmar o direito de fazer uma história “presentista" ou mesmo de praticar uma história engagée não isenta o historiador de seus deveres empíricos em relação aos dados. Pelo contrário: a fim de mostrar o que deseja, a histoire à thèse, orientada para o presente, deve tentar convencer-nos da exatidão de sua interpretação do passado. Afinal de contas, o próprio Foucault descreveu seu livro como "uma história das condições econômicas, políticas, ideológicas e institucionais de acordo com as quais se realizou a segregação dos insanos durante o período clássico.[16]
No prefácio à edição original de seu livro. Foucault dispôs-se a escrever uma história “da própria loucura, em sua vivacidade, antes de qualquer captura pelo saber ‘psiquiátrico” — uma tarefa, segundo a justa observação de AIlan Megill, não muito diferente da historiografia ortodoxa.[17] É verdade que, mais tarde, Foucault veio a negar que estivesse visando a uma reconstituição da loucura como um referencial histórico independente[18]— mas não há como desmentir que, na época, ele tinha em mente um objetivo historiográfíco “normal” ao escrever História da Loucura, Foucault desejava questionar os relatos históricos anteriores, e não duvidar da legitimidade, para não falar da possibilidade, de fazer pesquisa histórica. Podemos concluir, então, que no jovem Foucault o “anti-historiador” ainda não existe em plenitude. Em seu lugar havia apenas um contra-historiador, quer dizer, um historiador que desafiava as interpretações prevalecentes de uma dada parle de nosso passado. Por conseguinte, temos, afinal, o direito de perguntar: a história contada por Foucault é acurada?
Numa medida importante, é. Até mesmo um de seus principais críticos, Lawrence Stone, admite que Foucault tende a estar certo ao pensar que a internação generalizada no fim do século XVII e no século XVIII representou um retrocesso, sujeitando pessoas mentalmente perturbadas, indiscriminadamente, a um tratamento drástico antes só dispensado a psicóticos perigosos.[19] O problema começa quando Foucault (a) salienta o "diálogo” medieval e renascentista com a loucura, em contraste com a atitude segregadora em relação a ela nos tempos modernos, isto é, racionalistas; (b) insiste em tratar a ”idade clássica’' — a época da Grande Internação — como sem precedentes na natureza, e não apenas na escala, de sua atitude em relação à demência, dando grande importância à conversão dos leprosários em hospitais mentais e ao surgimento de uma concepção "fisiológica” da loucura como doença: e (c) considera as terapias Tuke-Pinel como métodos novos em folha para enfrentar a doença mental, denunciando seus procedimentos morais como totalmente repressores.
No capítulo V de seu esplêndido livro Psycho Politics (1982), o falecido Peter Sedgwick desmentiu vários pressupostos básicos do quadro histórico de Foucault.[20] Demonstrou, por exemplo, que muito antes da Grande Internação muitas pessoas insanas tinham sido postas sob custódia e submetidas a terapia (por mais primitiva que fosse) na Europa. Antes da era clássica de Foucault, havia por todo o vale do Reno vários hospitais com acomodações especiais para dementes. Havia, desde o século XV, uma cadeia nacional de asilos de caridade, principalmente para os loucos, na Espanha — sociedade da qual não se poderia dizer que fosse muito propensa a aceitar o racionalismo moderno. Da mesma forma, várias técnicas atestando uma concepção físiológica rudimentar da doença mental, que, no modelo de Foucault, são atributos da Idade da Razão, na verdade já abundavam na Europa pré-racionalista, muitas delas sendo oriundas de sociedades muçulmanas.
Dietas, jejuns, sangrias e a branda rotação (o lunático era levado ao esquecimento mediante a centrifugação por meios mecânicos) eram algumas dessas técnicas, a maioria das quais remontava à medicina antiga (uma época, de qualquer forma, fora do campo de estudo de Foucault). Com muita perspicácia, Sedgwick acentua a continuidade nas artes médicas no decurso das eras. Não nega a expansão da “atitude médica“ durante a fase inicial do racionalismo moderno, mas observa não ser possível derivar a concepção da loucura simplesmente de um disseminado "racionalismo burocrático” em ruptura com uma suposta longa tradição de permissividade frente à insanidade.
H. C. Erick Midelfort reuniu vários aspectos históricos que solapam, ainda mais, grande parte dos fundamentos de História da Loucura.[21] Midelfort não se coloca, em princípio, contra a desmitificação do lluminismo por Foucault. Está longe de se posicionar como um indignado defensor de qualquer relato benevolente sobre os heroicos progressos terapêuticos. Mas exibe um impressionante domínio de fontes escritas sobre a história da loucura e da psiquiatria.[22]
Convido o leitor interessado a fazer sua própria colheita na brilhante síntese de Midelfort e a tirar partido de seu abundante suporte bibliográfico. Contudo, convém salientar desde logo alguns pontos: 1) há muitas comprovações de crueldade na Idade Média contra os dementes; 2) no fim da Idade Média e na Renascença, os loucos já se encontravam com frequência confinados, em celas, prisões e até jaulas; 3) com ou sem ‘’diálogo” , durante aqueles tempos, a loucura era frequentemente ligada ao pecado — mesmo na mitologia da Nau dos Insensatos; e, nessa medida, era vista sob uma luz muito menos benévola do que sugere Foucault (as mentes pré-modernas aceitavam a realidade da loucura — “loucura como parte da verdade” —, da mesma forma que aceitavam a realidade do pecado; mas isso não quer dizer que prezassem a loucura, assim como não prezavam o pecado); 4) como demonstrou Martin Schrenk (ele próprio um severo crítico de Foucault), os primeiros hospícios modernos surgiram a partir de hospitais e mosteiros medievais, e não da reabertura dos leprosários; 5) a Grande Internação teve como objetivo primordial não a marginalidade, mas sim a pobreza — a pobreza criminosa, a pobreza louca ou a pobreza pura e simples; a ideia de que ela prenunciava (em nome da burguesia ascendente) uma segregação moral não suporta exame atento; 6) de qualquer forma, tal como frisou Klaus Doerner (outro crítico de Foucault), não houve confinamento, de controle estatal, uniforme: o modelo inglês e o alemão, por exemplo, afastaram-se muito do Grand Renfermement de Luís XIV; 7) a periodização de Foucault parece errônea. Em fins do século XVIII, a internação dos pobres já era vista, de maneira geral, como um fracasso: mas foi então que a internação dos loucos realmente ganhou impulso, como mostram conclusivamente as estatísticas referentes à Inglaterra, à França e aos Estados Unidos; 8) Tuke e Pinel não “inventaram” a doença mental. Em vez disso, devem muito a terapias anteriores e com frequência utilizavam também seus métodos; 9) ademais, na Inglaterra oitocentista, o tratamento moral não constituía um elemento tão central na medicalização da loucura. Longe disso; como mostra Andrew Scull, os médicos encararam a terapia moral de Tuke como um ameaça leiga à sua arte e se esforçaram para evitá-la ou para adaptá-la à sua própria atuação. Mais uma vez, os monólitos cronológicos de Foucault desabam ante a abundância de provas históricas que os contradizem.
Com efeito, essa sinistra crônica de arrogante tirania médica não é de maneira alguma apoiada pelos dados reais sobre a terapia na era do asilo. David Rothman {The Discovery of Asylum, 1971), historiador social que realizou pesquisas inovadoras sobre o desenvolvimento das instituições mentais nos Estados Unidos à época de Jackson, documentou que em meados do século XIX, verificou-se um afastamento dos métodos psiquiátricos em favor de métodos apenas custodiais. O relato de Rothman coincide à perfeição com o ‘niilismo terapêutico” da época — a relutância médica a passar do diagnóstico ao tratamento, com base numa concepção pessimista dos poderes da medicina (meio século mais tarde, o jovem Freud ainda teve de combater essa ideologia médica, muito arraigada em Viena).[23] É bom notar que Rothman não está de modo algum sugerindo que o asilo custodial (em contraposição ao psiquiátrico) fosse boa coisa. Pelo contrário, para ele o espírito custodial estava ligado ao controle burguês das categorias sociais “perigosas”. Mas, se ele tem razão, o que estava na ordem do dia como fenômeno repressivo em relação à insânia era a passividade médica, e não a psiquiatria aJtamente intrometida que Foucault quer apresentar como serva de uma Razão despoticamente intervencionista e arregimentadora.
Em essência, o livro de Foucault é uma argumentação passional contra aquilo que aprendemos a ver como sendo o humanitarismo do lluminismo. Por conseguinte, os especialistas sobre aquele período, como Lawrence Stone, dificilmente poderiam ter deixado de se opor a tal desafio às suas concepções mais equilibradas.[24] E que devemos pensar da ideia da criação da psiquiatria como "um gigantesco encarceramento moral”? A verdade é que os hospícios particulares e os velhos asilos estatais costumavam ser escandalosamente mal-administrados, e que as reformas de pioneiros como Tuke e Pinel, conducentes ao surgimento dos primeiros hospitais psiquiátricos modernos, embora não fossem tão angelicais como no passado se pensou, representaram atos genuínos de filantropia esclarecida. A acusação de “sadismo moralizante”, aplicada por Foucault à infância da psiquiatria, é um exemplo de melodrama ideológico. É muito bom tomar posição du côté de la folie — só que, na ânsia de se colocarem os insanos no papel de vítimas da sociedade, pode-se facilmente esquecer que muitas vezes eles são profundamente infelizes e que o flagelo de que padeciam exigia terapia. A ideia de que a atitude educação-e-não-grilhões fosse apenas um artifício carcerário repressivo (ainda que inconsciente) não resiste ao exame crítico. A fobia anti-burguesa de Foucault tende a fazê-lo rejeitar a filantropia vitoriana in limine, mas um humanitário de classe média menos tendencioso, chamado Charles Dickens, que se escandalizara com os asilos de pobres em Londres, ficou vivamente impressionado — observa o Dr. J. K. Wing em Reasoning about Madness[25] — com a atmosfera humana dos pequenos hospitais psiquiátricos dos Estados Unidos, onde médicos e atendentes chegavam a partilhar a mesa com os pacientes. Seria incorreto extrapolar daí, e, na verdade, de muitos outros testemunhos positivos contemporâneos, e pintar um retrato idílico de humanitarismo psiquiátrico. Contudo, tampouco há qualquer motivo forte, apoiado nos fatos, para chegarmos à conclusão oposta e declararmos a plena medicalização da loucura durante a primeira era da psiquiatria “burguesa” parte integrante de uma medonha sociedade (para usarmos um adjetivo mais tarde transformado por Foucault em slogan) slogan.
Na realidade, desde 1969 dispomos do corretivo natural ao quadro maniqueísta de Foucault — a bem pesquisada “história social da insanidade e da psiquiatria” na sociedade burguesa, realizada por Klaus Doerner. Seu livro Os Loucos e a Burguesia, um estudo comparativo das experiências britânica, francesa e alemã está longe de discordar inteiramente de Foucault na descrição da alvorada da psicoterapia (ainda que lhe aponte a tendência para generalizar excessivamente a partir do caso francês). Onde Doerner realmente se afasta de História da Loucura é na avaliação do fenômeno.
Tomemos seu conciso capítulo sobre Pinel (11,2), ou ainda o capítulo (1,2) sobre o médico londrino que ele, com justiça, resgata das sombras do esquecimento como tendo sido o primeiro a oferecer uma abordagem global da psiquiatria, abarcando a teoria, a terapia e o asilo: William Battie (1704-1776).
Os métodos de alienistas esclarecidos, como Pinel, provocaram uma mudança decisiva — do isolamento dos dementes a um retorno da loucura à visibilidade social, em asilos abertos à contemplação de parentes, psiquiatras e estudantes de medicina. Mas enquanto Foucault prontamente vitupera a tendência ''objetificante” da contemplação médica no regime de observação sob o qual os pacientes eram colocados, Doerner frisa que a primazia dos "tratamentos morais" foi uma das grandes causas do abandono de métodos terapêuticos tradicionais; e, nessa medida, representou uma considerável rejeição da “atitude de distanciamento” (lembremo-nos do hospital americano de Dickens).
Da mesma forma, Doerner. que capta com agudeza a influência de ideias rousseaunianas sobre a educação moral não-autoritária (Pinel era devoto de Jean-Jacques) e não despreza a difusão da sensibilidade pré-romântica às vésperas das reformas psiquiátricas, julga profundamente humanitário o programa cura-e-não-assistência de Battie na Londres de meados do século XVIIL Não foi à toa que o livro de Battie, Treatise on Madness (1758), constituiu um ataque (prontamente repelido) contra o niilismo terapêutico da família Monro, cujos membros tinham sido proprietários e administradores do Hospital Bedlam durante dois séculos. Além disso, ao ressaltar o aspecto de alienação da insânia, como comprova o próprio título de seu Traité médico-philosophique sur l’aliénation mentale ou la manie (1801), Pinel recolocou a loucura dentro do homem — fosse na mente ou no corpo. No entanto, ao fazê-lo, ele destacou menos a loucura-como doença (a bête noire de Foucault) do que a insânia como caso individualizado. Ora, esse foco no indivíduo (um prenúncio de Freud) constituía, patentemente, um extraordinário progresso — paralelo, na verdade, a uma mudança semelhante ocorrida na medicina física contemporânea, a qual, como veremos mais adiante, viria a ser brilhantemente exposta por Foucault em seu livro seguinte. Doerner só pode concluir que Foucault, a despeito de ter sido o criador da "primeira atitude importante” em relação à sociologia da psiquiatria, oferece um relato "demasiado unilateral” — um relato onde a dialética do lluminismo é "resolvida unilateralmente em termos de seu aspecto destrutivo”.
Em O Nascimento da Clínica (1963), Foucault examinou um período muito mais breve, a rica história da medicina entre o último terço do século XVIII e a Restauração Francesa (1815-1830). Concentrando-se em velhos tratados médicos, dos quais faz fascinantes interpretações, o livro, encomendado por Canguilhem, exuma diferentes "estruturas perceptivas” que sustentaram três tipos sucessivos de teoria e prática da medicina. Destacam-se duas mudanças principais. Na primeira, uma medicina das espécies, que ainda prevalecia pela altura de 1770, cedeu lugar ao primeiro estágio da medicina clínica. A medicina das espécies fazia na nosologia o que Lineu fez na botânica: classificava as doenças como espécies. Supunha que as doenças fossem entidades sem qualquer ligação necessária com o corpo. A transmissão das doenças ocorria quando algumas de suas “qualidades” misturavam-se. através de “afinidade”, com o tipo de temperamento do paciente (ainda se estava próximo de Galeno e suas concepções humorais). Julgava-se que “ambientes não naturais” favorecessem a disseminação da doença, e por isso se acreditava que os camponeses padeciam de menos enfermidades que as classes urbanas (as epidemias, ao contrário das doenças, não eram tidas como entidades fixas, mas sim como produtos do clima, da fome e de outros fatores externos). Em contraste, em seus primórdios a medicina clínica foi uma medicina dos sintomas: encarava as doenças como fenômenos dinâmicos. Em vez de entidades fixas, as doenças eram consideradas misturas de sintomas. Estes, por sua vez, eram tomados como sinais de ocorrências patológicas. Como resultado disso, os quadros taxionômicos da medicina clássica foram substituídos, na teoria médica, por contínuos temporais, que permitiam, em particular, um maior estudo de casos.
Por fim, no limiar do século XIX, surgiu outro paradigma médico: a mente clínica substituiu a medicina dos sintomas por uma "medicina dos tecidos" — a teoria anátomo-clínica. As doenças já não denotavam espécies nem conjuntos de sintomas. Em vez disso, agora indicavam lesões em tecidos específicos. Os médicos passaram a concentrar-se muito mais — na tentativa de adquirir conhecimentos sobre a patologia — no paciente individual. A mirada médica transformou-se num olhar, o equivalente visual do tato, os médicos passaram a buscar causas ocultas e não apenas sintomas específicos. A morte — vista como um processo vital — tomou-se a grande mestra da anatomia clínica, revelando, através da decomposição dos corpos, as verdades invisíveis procuradas pela ciência médica.
Para Foucault, a morte e o indivíduo — justamente os temas da grande arte e da literatura românticas — agora fundamentavam também o novo “código perceptivo” da medicina — um código que encontrou seu evangelho na Anatomia geral (1901) de Xavier Bichat (1771-1802). Quando François Broussais (1772-1838; Examínation of Medical Doctrines, 1816), partindo da histologia de Bichat, baseou o saber médico na fisiologia e não simplesmente na anatomia, e explicou as febres como reações patológicas provocadas por lesões em tecidos, completou-se o círculo: a medicina clássica morreu nas mãos dos médicos científicos. A medicina clássica linha um objeto — a doença — e uma meta — a saúde. Ao atingir a maioridade, a medicina clínica substituiu a doença pelo corpo doente como objeto de percepção médica, e a saúde pela normalidade como o desiderato da arte de curar. Assim, o ideal de normalidade, desmascarado como um expediente repressivo em História da Loucura, volta a ser examinado com hostilidade por Foucault ao fim de sua história do nascimento da medicina moderna.
Dessa vez, porém, o quadro se apresenta muito menos carregado de preconceito antimodemo e antiburguês. Em sua primeira obra, o pequeno livro intitulado Doença Mental e Psicologia (1954), Foucault havia muitas vezes raciocinado como um psicanalista da “escola cultural”, atribuindo o distúrbio mental à sociedade capitalista, dominada por conflitos. Em História da Loucura ele se colocou, mais ousadamente, ao lado da loucura (mítica) contra a razão burguesa. Embora seja pouco provável que ele admitisse qualquer dessas influências, dir-se-ia que ele passou da posição de um Erich Fromm para a de um Norman Brown[26] — trocou uma ênfase no bloqueio social da felicidade humana por uma exortação à liberação do id dionisíaco. Em O Nascimento da Clínica não se percebem tais transportes de emoção. O livro é muito bem escrito — na verdade, composto com grande habilidade literária, mus seu tom não está muito distante da sóbria elegância dos ensaios do próprio Canguilhem sobre a história das ideias científicas.
O que O Nascimento da Clínica fez foi colocar Foucault mais perto do estruturalismo. Um ensaio que fala de códigos e estruturas de percepção, que descreve as “espacializaçôes do patológico” e insiste numa exposição não-linear da história intelectual — na “arqueologia” como um relato cesural, à maneira de Kuhn, de mudanças paradigmáticas no pensamento médico — não podia deixar de ser comparado ao estilo teórico que então prevalecia na França. Uma talentosa comentadora, Pamela Major-Poetzl, observou com razão que, enquanto História da Loucura tentava mudar nossa percepção corrente da loucura, mas não nossa maneira convencional de pensar a respeito da história, O Nascimento da Clínica fazia exatamente isto:[27] o livro introduz vários conceitos espaciais caros ao espírito estruturalista.
Por fim, deve-se também observar que o livro inaugura, na obra foucaldiana (SIC), a problemática do modo de inserção social dos discursos. Foucault concede um razoável grau de autonomia à formação do discurso. No entanto, isto não é tudo. Ele também deseja investigar a maneira concreta como um dado discurso (por exemplo, o pensamento médico) se articula com outras práticas sociais que lhe são externas. Ao mesmo tempo, tenta com afinco evitar grosseiros clichês deterministas, como as ‘'explicações" generalistas do tipo base/ superestrutura do marxismo (vulgar); e se esforça por imaginar padrões de explicação mais flexíveis sem cair nas nebulosas abstrações comuns no marxismo estrutural de Althusser e de seus seguidores, que falam muito de "sobredeterminação“, “causação estrutural" e “efeito estrutural", mas raramente, ou nunca, se empenham num corpo-a-corpo com qualquer material empírico (como se não gostassem de sujar as mãos com a análise da história real).
Em O Nascimento da Clínica há capítulos sobre o contexto social de grandes mudanças na teoria e na prática médicas. Por exemplo, o livro mostra como o governo, durante toda a Revolução Francesa, coagido pelo aumento da população enferma em tempo de guerra, relutantemente abriu clínicas para compensar a falta de hospitais e de médicos competentes. A clínica, por sua vez, possibilitou contornar as guildas médicas e seu saber tradicional, favorecendo assim o lançamento de novas “ estruturas perceptivas“ na medicina. Vemos, pois, que a relação causal entre o contexto social e a mudança paradigmática no discurso médico tem um caráter indireto, até oblíquo. É tudo uma questão de mostrar "como o discurso médico, enquanto prática relacionada com um campo particular dos objetos, encontrando-se nas mãos de um certo número de indivíduos designados estatutariamente e com certas funções a exercer na sociedade, está articulado em práticas que lhe são externas e que não são, elas próprias, de ordem discursiva“.[28]  Articulado”: eis a palavra estratégica. Como Roland Barthes gostava de dizer, o estruturalismo ama “artrologias” — disquisições elaboradas sobre elos e conexões.





[10] Foucault 1978: História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva. Trad. de Folie et déraison: Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1961.
[11] Id. Ibid.
[12] Id. Ibid. p. 500
[13] Serres, Michel. La communication. Paris: Les Éditions de Minuit, 1968, p. 178.
[14] Cf. a recensão de Edgar Friedenberg em The New York Times Book Review, 22 ago. 1965.
[15] Trad. Inglesa in Foucault 1977: Language, Counter-Memory, Practice: Selected Essays and Interviews. Ithaca: Cornell University Press. Edited, with an introduction, by Donald F. Bouchard; tr. By Donald F. Bouchard and Sherry Simon.
[16] Ver sua segunda resposta a George Steiner (crítico de História da loucura em The New York Review of Books, in Diacritics v. 1 (outono de 1971), p. 60.
[17] Megill, Allan: Foucault, structuralism and the end of history. Journal of Modern History 51 (September 1979): p. 451-503.
[18] Foucault, Michel. A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes. Trad. De L’Archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969, cap. 11, 3.
[19] Stone, Lawrence. Madness. In: The New York Review of Books, 16 December 1983, p. 36.
[20] Sedgwick, Peter. Psycho Politics. London: Pluto Press, 1982.
[21] Midelfort. In Malament, B.C. (Ed.). After the Reformation: Essays in Honor of J.H. Hexter, Pennsylvania,  1980.
[23] Sobre esse ponto, ver Johnston, Willian M. The Austrian Mind: na Intellectual and Social History 1848-1938. University of California Press, 1972, p. 223-229.
[24] Para a crítica de outro especialista, ver a recensão de Peter Gay in Commentary 40 (out. 1965). Peter Gay. The Enlightment: na Interpretation. The Rise of Modern Paganism. London: Wildwood House, 1966.
[25] Wing, John K. Reasoning about Madness. Oxford University Press, 1978, p. 116.
[27] Major-Poetlz, Pamela. Michel Foucault’s Archaelogy of Western Culture. Brighton, Sussex: The Harvester Press, 1983, p. 148.
[28] Foucault, Michel. A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes. Trad. De L’Archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969, 1972, cap. IV, 4.


domingo, 10 de dezembro de 2017

A Perversão de Foucault




A PERVERSÃO DE FOUCAULT

Roger Kimball
(Tradução de Humberto Campolina)

                                                  
“Embora seja difícil, ou até impossível, representar a vida de um homem inteiramente sem máculas e livre de culpas, devemos utilizar os melhores capítulos para construir o mais completo retrato e cuidar para que isso se torne um esboço real. Alguns erros ou crimes, por outro lado, que podem macular a carreira de um homem e que teriam sido cometidos por paixão ou necessidade política, devemos observar que foram perpetrados mais por lapso de alguma virtude do que em decorrência de um vício inato. Não devemos enfatizar isso em nossa história, e devemos mostrar um pouco de indulgência pela inabilidade humana em produzir um caráter absolutamente bom e dedicado à virtude.” (Plutarco, Vida de Cimon).

“Eu não tenho dúvidas de que qualquer coisa que alguém escreve, o faz com o objetivo de se esconder. Não pergunte quem eu sou e não me peça para fazer o mesmo: deixe para os burocratas e a polícia procurarem saber para que servem nossos escritos.” (Michel Foucault, em A Arqueologia do Saber).

Olhando para a nossa arrogante e cética era, historiadores do futuro irão observar o renascimento da hagiografia dos anos 80 e 90 do século passado com uma assombrada curiosidade. Por um lado, essas décadas presenciaram uma notável insuficiência de hagioi ou santos avaliáveis pela honra santificada. Assim, também, o temperamento revelado pelo nosso tempo é descrito – ou pelo menos alguns pensam dessa forma – como o da adulação. Destarte, a ambiciosa biografia do historiador-filósofo francês Michel Foucault [1] (Paul-Michel, como seu pai) demonstra como a idolatria pode triunfar sobre vários obstáculos.

Foucault, que morreu de AIDS em junho de 1984 aos 57 anos, tem sido o queridinho há longo tempo do superchique acadêmico da desconstrução Jacques Derrida, outro importante ativista francês. Aqui o desconstrutivismo especializou-se em demonstrar que a linguagem refere-se somente a ela mesma (“Nada existe fora do texto”, segundo a famosa frase de Derrida); já o foco de Foucault foi o poder. Ele trouxe a péssima notícia em péssima prosa de que toda instituição, não importa quão pareça benigna, é na realidade um teatro de camufladas dominação e subjugação; os esforço para as reformas libertadoras – do asilo, das prisões, da sociedade em geral – não passam de álibi para intensificar o status quo; esses inter-relacionamentos humanos são sobretudo uma luta pelo poder; a "verdade" em si mesma é meramente um coeficiente de coerção; etc, etc. "É surpresa - pergunta Foucault em Vigiar e Punir - que as prisões se assemelhem a fábricas, escolas, quartéis, hospitais, e tudo isso lembrem prisões?" Naturalmente tais "questionamentos" obtiveram um estrondoso sucesso nos cursos de graduações. E o Sr. Miller pode estar certo ao exclamar por ocasião da morte de Foucault "que talvez ele [Foucault] tenha sido o intelectual mais famoso do mundo" - famoso pelo menos na universidade americana, onde herméticos argumentos sobre sexo e poder são disputados com risível incompetência presunçosa por cabeludos desgrenhados. Por tudo isso, nota-se que Foucault se fez muito parecido com seu mais talentoso rival e companheiro de atividades esquerdistas, Jean-Paul Sartre, cuja fascinante carreira Foucault emulou sempre que pôde, começando com um cargo no partido Comunista Francês no começo dos anos 50. Foucault nunca conseguiu igualar-se a Sartre -- nunca escreveu algo original ou filosoficamente significante como O Ser e o Nada, e jamais teve a autoridade pública que o existencialista teve nos anos pós-guerra. Mas ele teve eminentes e devotos entusiastas, inclusive figuras conhecidas como o historiador Paul Veyne, seu colega do Collège de France, que declarou Foucault como “o mais importante acontecimento do pensamento em nosso século”.

Mesmo assim, ele não parece um provável candidato à canonização. Mas o enfático título desta biografia -- A Paixão de Michel Foucault -- põe os leitores a par de que, na opinião do sr. Miller, seu biografado apresenta de alguma forma uma vida exemplar de auto-sacrifícios comparáveis aos contidos na Paixão de Jesus Cristo. (Não se trata de referências acidentais à Paixão: o sr. Miller faz uma conexão explícita.) A calorosa recepção à Paixão de Michel Foucault sugere que o sr. Miller, um prolífico jornalista cultural e professor da New Scool for Social Research, não está só nessa apreciação. Para ser exato, algumas vozes dissidentes, a maioria proveniente de ativistas do movimento acadêmico gay, acharam que o sr. Miller não foi suficientemente reverencial. Mas a grande maioria dos críticos, incluindo alguns luminares como Alexander Nehamas, Richard Rorty e Alasdair MacIntyre, expressaram sua admiração e "gratidão" pela performance do sr. Miller.

Mas o que se torna novidade nessa performance é o sr. Miller negligenciar o acima referido conselho de Plutarco de que devemos concentrar-nos nos "melhores capítulos" e encobrir "os crimes e os erros" quando escrevemos sobre um grande homem. Apesar de ser questionável em uma biografia, esse expediente parece inquestionável em uma hagiografia. Não que alguém familiarizado com a vida de Foucault pense nele como um santo. Sr. Miller o descreve como "um novo tipo de intelectual", "modesto e sem nenhuma pretensão mistificadora". Mas isso é falso. Na verdade, Foucault ocasionalmente utiliza-se de rituais de falsa modéstia em suas leituras ou denegrindo obras anteriores de outros em favor de trabalhos seus posteriores. E, como demonstrou o jornalista francês Didier Eribon em biografia anterior (e que o sr. Miller ignorou), arrogância e mistificação são traços profundos no caráter e estilo de Foucault [2]. Eribon nota que na escola, onde Foucault decorou seu quarto com a chocante gravura de Goya sobre as vítimas da guerra, o futuro filósofo era "quase universalmente detestado". Colegas de escola lembram dele como brilhante, mas também frio, sarcástico e cruel. Ele várias vezes tentou -- e frequentemente com riscos -- suicídio. Autodestruição era outra obsessão de Foucault, e o sr. Miller está correto em enfatizar a fascinação de Foucault pela morte. Nesse aspecto, teve como ideal muitas vezes o escritor Marquês de Sade, de cujos heróis seguiu a moral e o intelecto. (Embora, como Miller nota, Foucault achava que Sade "não foi longe o suficiente") Foucault se divertia em imaginar “festival de suicídios" ou "orgias" nos quais sexo e morte se misturassem na apoteose de encontros anônimos. Nesses planejamentos suicidas, imaginava procurar "por parceiros anônimos para morrerem livres de qualquer identidade".

O sr. Miller descreve Foucault como "um dos nomes representativos -- um notável pensador -- do século XX". Mas a grande novidade do seu livro prende-se no que houve de vício e perversão em Foucault -- sua adição a práticas sadomasoquistas
e em glorificar isso como uma corajosa nova forma de virtude acima de tudo, uma especial virtude filosófica. Notem bem: o sr. Miller não tenta desculpar, perdoar ou tolerar os vícios de Foucault; em nenhum momento, ele exclama que isso são coisas humanas, algo muito humano em um homem que, apesar disso, foi um grande pensador. Certamente tal atitude leva a um criticismo implícito: nós desculpamos somente o que requer ao nosso ver desculpa; nós toleramos somente o que achamos que deve ser tolerado, sempre de acordo com o nosso cânone [3]; o que eu aprovo inteiramente eu ratifico e celebro; e a celebração a Foucault e a tudo que ele fez é o tópico mais importante da agenda do sr. Miller neste livro.

O sr. Miller afirma que o pendor de Foucault pelo sadomasoquismo era uma indicação de admirável aventura ética. De fato, em seu ponto de vista, ele ficou agradecido a Foucault pela exploração pioneira de formas de prazer e consciência proibidas até hoje. Em seu prefácio, o sr. Miller sugere que Foucault, " na sua forma radical de abordar o corpo e seus prazeres, foi de fato o rei dos visionários; e isso no futuro, quando a ameaça da AIDS retroceder, homens e mulheres, sejam heterossexuais ou gays, vão renovar, sem culpa ou vergonha, a experimentação corporal de forma integral ou em suas questões especificamente filosófica". Em outras palavras, o sr. Miller inscreve no rol dos comportamentos e atitudes virtuosos o que até outro dia era condenável como patológico.

Muitos dos seus críticos têm alegremente concordado com esse fato. Por exemplo, o eminente nietzscheano Alexander Nehamas, ao longo de sua extensa e prolixa resenha para o The New Republic, docilmente concorda que “sadomasoquismo foi uma espécie de bênção na vida de Foucault. Essa prática permitiu-lhe oportunidade de ter experiência pessoal com o poder como fonte de prazer.” Consequentemente, Nehamas conclui, “Foucault ampliou os limites do que pode ser uma admirável vida humana”. Isabelle de Courtivron, chefe do departamento de línguas estrangeiras do MIT, também assegura aos leitores de uma resenha de primeira página do New York Times Book Review que Foucault “expandiu o conhecimento moderno de forma profunda e original”. Ela ainda recomenda o sr. Miller “por desprezar chavões estabelecidos para certas práticas sexuais, e por oferecer uma análise clara e sem juízo de valor (ainda assim de grande valor) dos instrumentos e técnicas do que ele considera um mútuo e consensual teatro da crueldade”.

A grande coisa que se pode dizer a respeito desse esforço de boas-vindas ao sadomasoquismo é que se trata de um reforço a um novo estilo de vida. Acima de tudo, talvez, demonstre o tipo de seqüela espiritual e intelectual que pode resultar, ainda hoje – e ainda para a maioria das mentes educadas – da ressaca do radicalismo dos anos 60. Não tenha dúvidas: por trás do comentário anódino e professoral de Coutivron sobre ausência de juízo de valor na abordagem da sexualidade humana e o sonho de Miller de “experimento corporal” feito “sem culpa ou vergonha” está a idéia de emancipação polimorfa que foi introduzida no colapso moral e político dos anos 60. Entre as inúmeras atividades falsamente libertárias que brotaram naqueles anos, nenhuma teve mais influência do que o trabalho freudiano-marxista Eros e Civilização (1966). Avidamente adotado pelos entusiastas da contracultura que queriam acreditar que o aquecimento de sua vida sexual iria apressar a derrubada do capitalismo e inaugurar o próximo milênio, traçando as linhas da poderosa luta entre “a lógica da dominação” e a “desejo pelo prazer”, atacando “a realidade estabelecida em nome do princípio do prazer” e fulminando “a ordem estabelecida da sexualidade procriativa”. Muito foucaultiano tudo isso. Tal como é a esplêndida ideia marcusiana da “tolerância repressiva” que sustenta “o que é proclamado e praticado como tolerância hoje” – Marcuse escreveu em 1965 tendo em mente as instituições que exercem a liberdade da palavra e de reunião – “a maioria delas serve à causa da opressão”. Em linguagem orvelliana: Liberdade é tirania, tirania é liberdade.

O clima radical dos anos sessenta percorre todo o livro do sr. Miller e em todas as páginas brota suas simpatias por Foucault. Com essa visão, parece natural que o sr. Miller tenha entre seus títulos o A História Ilustrada dos Rolling Stone Sobre o Rock and Roll, que ele editou, e Democracia é nas Ruas: De Porto Huron ao Cerco de Chicago (1978). Não conheço muito o trabalho anterior, mas Democracia é nas Ruas é um explícito hino à New Left e seu “sonho coletivo” de “democracia participativa”. Nesse livro, o sr. Miller está registrando a “experiências de ruptura” – “durante os protestos de ocupação, as marchas e nas violentas confrontações” – e o “espírito inebriante de liberdade” dos anos sessenta. No mesmo caminho, A Paixão de Michel Foucault é um revival daquele livro tardio, produzido com um tema francês e recheado de couro negro.

Portanto, não é surpresa que, quando o sr. Miller dá vazão a esvanecimentos do estudante revoltado de 1968, sua prosa lustrada pela nostalgia incendeie sua imaginação. É como se ele estivesse recordando sua perdida
talvez nem tão perdida assim adolescência.

Nesses anos conturbados, a desordem foi se espalhando pelas ruas parisienses. Placas publicit
árias foram derrubadas, sinalização de rua posta abaixo, andaimes e arames farpados destruídos, estacionamentos virados de cabeça para baixo. Montanhas de escombros eram empilhadas no meio dos bulevares. Estavam todos atordoados, mas o ambiente era festivo. “Todos de repente reconheciam a realidade de seus desejos”; algum participante escreveu, resumindo o pensamento preponderante: “Nunca antes a paixão destrutiva foi tão criativa”.

Foucault infelizmente não participou dessa primeira leva de revoltosos, pois estava lecionando na Universidade de Tunis. Mas seu amante Daniel Defert participou, e o punha informado dos acontecimentos fazendo-o ouvir um rádio transistor por telefone por horas a fio. No final desse ano, Foucault foi nomeado chefe de departamento na recém-criada Universidade de Vincennes, perto de Paris. O então professor de filosofia de 34 anos pôde assim aderir aos acontecimentos. Em janeiro de 1969, um grupo de 500 estudantes tomou ostensivamente o prédio da administração e o anfiteatro em solidariedade a seus bravos colegas que invadiram e ocuparam a Sorbonne no final daquele dia. Quando a polícia chegou, ele seguiu o grupo recalcitrante que subiu ao telhado para resistir. O sr. Miller recorda orgulhosamente que Foucault apedrejava “alegremente” os policiais, mesmo estando muito “preocupado em não sujar seu belo traje de veludo negro”.

Não se passou muito tempo depois desse animado episódio, para Foucault emergir como um onipresente porta-voz da contracultura. Sua "política" era consistentemente insensata, uma combinação de tagarelice solene acerca de "transgressão", poder e vigilância, fermentada por uma extraordinária tolice sobre o exercício do poder no dia a dia. Foucault estava cego pelo pensamento de que "sujeito" significa "sujeição". "O significado da palavra, dizia, "sugere uma forma de poder que subjuga ou leva o sujeito a ser subjugado". Foucault posava de partidário apaixonado da liberdade. Ao mesmo tempo, ele jamais encontrou um revolucionário de que ele não gostasse. Foi defensor de extremismos marxistas, como o maoísmo; deu suporte ao Aitolá Khomeini mesmo quando o fundamentalismo dos aitolás tomou o poder e matou milhares de cidadãos iranianos. Em 1978, examinando o período pós-guerra da segunda guerra mundial, ele indagou: "O que podem os políticos fazer quando se trata de escolher entre a URSS de Stalin e os EUA de Truman?" Achar difícil responder essa questão nos diz muito da cabeça de Foucault.

Outra coisa interessante nas idiotices políticas de Foucault é que elas fazem parecer racionais outros tipos políticos também muito esquisitos. Num debate na TV holandesa ocorrido no final dos anos 70, por exemplo, o famoso lingüista radical americano Noam Chomsky pareceu ser a voz da sanidade e moderação em comparação com Foucault. Como o sr. Miller recorda, enquanto Chomsky insistia que “devemos agir como seres humanos responsáveis e sensatos, Foucault retrucava que idéias como sensatez, responsabilidade, justiça e leis são meramente discursos ideológicos, sem nenhuma legitimidade. “O proletariado não trava uma guerra contra a classe burguesa por considerar isso uma justa causa”, continuou Foucault. “O proletariado combate a classe burguesa porque quer o poder”. É claro que essa linha de raciocínio, produzidos é claro de forma mais sofisticada, vem desde que Sócrates encontrou Thrasymachus, mas naqueles dias ninguém ouvia palavras assim tão descaradas. Tampouco existia esse tipo raro de performance. Em outro debate, Foucault classificou o massacre de setembro de 1792, no qual milhares de pessoas suspeitas de simpatias com a realeza foram cruelmente assassinadas numa carnificina impar, como um exemplo de justiça popular. Como o sr. Miller ressaltou, Foucault acreditava que a justiça serve melhor para abrir as prisões, soltar criminosos e pôr abaixo os magistrados.

Embora sendo Foucault da geração dos anos 40 e 50, seu "público" era fundamentalmente as crianças dos 60: precoces, mimados, narcisistas, plenos de imaturos sentimentos políticos, arrebatado por fantasias inviáveis de absoluto êxtase. Ele se tornou um expert em despertar os delírios narcisistas dos sixties [geração dos anos 60. N do T] através da divinização do proibido, esse cínico estratagema da filosofia francesa contemporânea. Penso que essa foi a causa principal de seu grande sucesso como guru acadêmico. Na filosofia de Foucault, o "idealismo" dos sixties foi pintado com nuance sombria. Eles demandavam pela liberação de "todas as convenções", como insistentemente repete o sr. Miller. Em uma entrevista de 1968, Foucault sugeriu que "as diretrizes das sociedades do futuro vão ser formadas pelas experiências com droga, sexo, comunidades, outras formas de consciências e individualismos. Se o socialismo científico surgiu das utopias do século XIX, é possível que a real socialização emergirá das experiências do século XX."

De fato, drogas foram um auxílio a que Foucault recorreu livremente em sua procura por "experiências". Ele usou maconha nos anos 60, mas isso nada significou até 1975 quando experimentou LSD. O sr. Miller considerou tal experiência crucial no desenvolvimento intelectual do filósofo; o mesmo aparentemente achou Foucault, que descreveu o fato com fortes palavras de louvor. "A única coisa na minha vida comparável a essa experiência", ele disse na época, "é fazer sexo com um desconhecido. (...) O contato com o corpo de um desconhecido produz uma experiência da verdade similar ao que eu estou experimentando com a droga". "Eu estou agora entendendo minha sexualidade", concluiu. Parece que esse fato ocorrido no Death Valley foi realmente significativo para Foucault. Vários acontecimentos galvanizados por essa primeira experiência de Foucault com alucinógenos, ele deixou de lado nos volumes não-publicados da História da Sexualidade
uma pena! Como Miller notou, existiam milhares de páginas "de masturbação, de incesto, de histeria, de perversão, de eugenia: todos os capítulos importantes da filosofia do nosso tempo”.

1975 parece ter sido o annus mirabilis de Foucault. Foi marcante não apenas pelos prazeres proporcionados pelo LSD, mas também pelas suas incursões pela Bay Area da Califórnia e sua introdução no mundo da subcultura sadomasoquista de São Francisco. Foucault já tinha "experimentado" o S&M [sadomasoquismo] antes
de fato, essa inclinação lhe custou o relacionamento com o compositor Jean Barranqué. Mas ele jamais encontrou nada tão estimulante como as coisas que São Francisco lhe oferecia. De acordo com o sr. Miller, o filósofo, então com 50 anos, achou a cidade "um lugar de excessos de tirar o fôlego, que o deixava literalmente sem palavras". As incontáveis casas de banho homossexuais proporcionavam a Foucault reencontrar com a fascinação da sua vida com o 'impressionante, o indizível, o arrepiante, o estupefaciente, o extasiante', 'enlaçando-se à violência pura, ao ato sem-palavras'."

Como sempre, o sr. Miller apresenta a inclinação de Foucault para práticas sadomasoquistas como uma nobre batalha existencial por uma grande sabedoria política de liberação. Mesmo sendo o sadomasoquismo um tópico que o sr. Miller desde o início do livro discutiu, sua maior abordagem ao tema aconteceu em um capítulo que denominou “O futuro do saber”. “Aceitando um tipo de risco”, escreveu o sr. Miller, “Foucault se esbaldou novamente em orgias de torturas, trêmulo nas mais excitantes agonias, voluntariamente anulando-se a si mesmo, extrapolando os limites da consciência, permitindo as dores corporais, sendo gradativamente derretido nos prazeres através da química erótica.” ... “Através da intoxicação, da fantasia, do dionisíaco abandono do artista, pela maior procura por práticas nada ascéticas e uma desinibida exploração do erotismo sadomasoquista, parecia possível abrir, mesmo que fugazmente, as fronteiras entre a consciência e o inconsciente, entre a razão e a desrazão, o prazer e a dor e, por último, entre a vida e a morte. – e assim, claramente revelar que o jogo essencial entre o verdadeiro e o falso é manipulável, incerto e contingente”.

Muitas vezes o sr. Miller aparenta ser um sóbrio jornalista investigativo. Mas basta mencionar a palavra “dionisíaco” e tudo vai por água abaixo. Suspeito que isso é um reflexo, adquirido do também exagerado Alan Watts e outros produtores de mitos. Como o cão de Pavlov não pode deixar de salivar quando ouve o som da sineta, o sr. Miller também não consegue deixar de dizer algum disparate quando escuta alguém fazer menção a Dionísio.

Nada infelizmente nos poderá “jamais dizer” exatamente o que Foucault fez enquanto explodia os limites da consciência e apagava os limites entre a dor e o prazer, entretanto o sr. Miller fez uma descrição particularmente terrível do submundo das atividades sadomasoquistas que Foucault freqüentava, um mundo onde existem, entre outras atrações, “mordaças, penetrações lacerantes, mutilações, choques elétricos, tortura por alongamento, encarceramentos, castigos e chicotes” ... “Dependendo do clube”, diz ele respeitosamente, “o sujeito pode saborear a ilusão de bondade – ou a experiência das mais cruéis torturas físicas”. Foucault se imiscuiu nesta cena com um entusiasmo que deixou atônitos seus amigos; rapidamente adquiriu um enxoval de roupas de couro e, “para brincar”, uma variedade de grampos, algemas, capuzes, mordaças, chicotes, porretes e outros “brinquedinhos sexuais”.

A discussão que o sr. Miller empreendeu é certamente grotesca e cômica ao mesmo tempo. Apesar de tudo, o sr. Miller é um scholar consciencioso, e assim ele sentiu-se obrigado a suprir os leitores com uma lista completa de fontes. Em suas notas, ele nos informa que sua obra é baseada em trabalhos do gênero The Catacombs: A Temple of the Butthole, Urban Arboriginals: A Cerebrations of Leathersexuality e The New Leatherman's Workbook: A Photo Illustrated Guide to SM Devices. "Para as técnicas de gays SM neste ano", ele explica, “eu tenho relido em Larry Townshend, The Leatherman's Handbook II”. Essa recomendação ele nos faz de forma impassiva.

Comédia involuntária à parte, o discernimento geral sobre sadomasoquismo do sr. Miller é um oceano de contradições, mistura indigesta da pior psicobaboseira pop com um pomposo sermão "filosófico”. Adicionado às platitudes contraculturais sobre liberação sexual e emancipação psicológica, ele não pode entender por que "sadomasoquismo é uma das práticas sexuais mais amplamente estigmatizadas". Ainda, depois de todos esses anos! Por um lado, ele quer ajudar a superar o estigma, está desesperado para desintoxicar o sujeito, fazer a perversão parecer "benigna" e normal. Por outro lado, ele sente-se compelido a apresentar a prática sexual com torturas físicas como algo audacioso, "inovador" e "estimulante". Os chicotes e as algemas são realmente apenas "acessórios"; os encontros são "consensuais"; a dor é "freqüentemente suave"; os devotos do sadomasoquismo são, "no geral, não-violentos e bem ajustados ao restante da população". Entretanto, enquanto ele nos diz que encontrou uma almofada em um "cárcere" de práticas sadomasoquistas para tornar o ato mais confortável, ele também dá exemplo de um expert que, enquanto insiste que "a real viagem é mental", admite que "existe certamente dor e algumas vezes um pouco de sangue". Só um pouco de sangue...

Um dos frequentadores do sr. Miller lhe conta que uma da estratégia envolve uma viagem deslizante ladeira abaixo. Quando foi que você teve pela última vez um impulso violento?, perguntou-lhe o sr. Miller. Ora, afinal não somos todos sádicos enrustidos? "Depois de tudo", volta o sr. Miller, "sadomasoquismo não é meramente afirmar uma característica implícita talvez em todo relacionamento humano?". Ah, sim, "de certa forma". Nunca pareceu ocorrer ao sr. Miller que, mesmo se isso for verdade (trata-se de uma hipótese duvidosa), a diferença entre "implícito" e "explícito" é exatamente a diferença sobre a qual baseia-se no mundo inteiro o comportamento moral. Além do mais, nos "relacionamentos quentes" de Foucault, uma das coisas que mais o atraia era o anonimato dos parceiros: "Você encontra homens [nos clubes] que são para você o que você é para eles: nada, apenas um corpo no qual o prazer será possível. Você cessa de ser prisioneiro do seu próprio rosto, do seu próprio passado, de sua própria identidade”.

Entretanto, o sr. Miller reconhece – embora sem proclamar em alto e bom som – que em essência a obsessão sexual de Foucault não é produto de algum insight filosófico: é, sim, produto de seu desejo de esquecimento. “O prazer total”, bem disse Foucault, “está relacionado com a morte”. O triste percurso desse apóstolo do sexo e do hedonismo deve tê-lo mutilado mentalmente, como fez anteriormente com o Marquês de Sade, separando o prazer do sexo. Em uma das inúmeras entrevistas que deu nos últimos anos de sua vida, Foucault louvou o sadomasoquismo “como um criativo intercâmbio em que o sujeito pode proceder a uma dessexualização do prazer”. O patético dessa afirmação é que Foucault achava que isso era um argumento a favor do sadomasoquismo. E ele continuava: “A ideia de que o prazer corporal deve sempre vir do prazer sexual, e a idéia de que o prazer sexual é a essência de todo o nosso prazer sempre me pareceu um erro”. Bem, Michel, sempre existe alguma coisa errada a respeito desse assunto. Mas quem acredita que o “prazer corporal vem sempre do prazer sexual”? Já fizeste uma boa refeição à noitinha? Gostas de caminhar sob o sol? É parte renitente da lógica sadomasoquista que o que começa como um resoluto cultivo do prazer sexual em interesse próprio, acabe por extinguir totalmente o prazer. De fato, pode-se dizer que toda perseguição às formas extremas do prazer, que é a forma que está no coração do sadomasoquismo, drena o prazer para fora do prazer. O desejo pelo esquecimento termina no esquecimento do desejo.

As aventuras sexuais de Foucault nos anos 80 levantam uma questão inevitável sobre a AIDS. Foucault sabia ser portador da doença? O sr. Miller embarca em teorias contraditórias a respeito dessa questão. Ele começa dizendo que Foucault não sabia. Mas ele também cita Daniel Defert, para quem o amigo "tinha conhecimento" de que era portador de AIDS. "Quando ele foi para São Francisco pela última vez, ele encarou a viagem como uma experiência-limite." Isso põe o sr. Miller em uma difícil posição. Ele pensa que "experiência-limite" é por definição uma boa coisa. "Não é imoral ter espasmos devido a fantasias singulares e impulsos selvagens", ele escreveu, resumindo a questão "ética" do livro de Foucault Loucura e Civilização: "cada experiência-limite deve ser avaliada como um acesso ao inconsciente, à dimensão dionisíaca do ser humano." Mas onde fica o limite se isso envolve infectar pessoas com uma doença mortal? E o que dizer se o hobby de alguém implica em uma conduta homicida? O sr. Miller desconversa. Ele é totalmente a favor daquilo que denomina "pensamento alternativo" em se engajar em consensuais "atos de paixão potencialmente suicidas". Mas... e atos homicidas? Está bem claro o que Foucault pensava. Como ele escreveu no volume 1 da História da Sexualidade, "O pacto fáustico, quando o desejo tinha sido despertado em nós pelos ímpetos da sexualidade, era mudar inteiramente a vida dirigindo-a para o sexo, para a verdade e o governo do sexo. Sexo era o valor em si e para si”.

Foucault é conhecido sobretudo pela suspeição em todos os assuntos que ele investigou. Supostamente teria sido um intelectual supremo que dissecou a crueldade escondida nas relações de poder, os sombrios motivos e a ideologia secreta da burguesia que infecta os corações e mentes de todos. É curioso, entretanto, que os pupilos suspeitassem tão pouco do seu mestre. A tese central de Foucault afirma ser a realidade objetiva uma "quimera" e que a verdade tem sempre, em todo lugar, a função de manter o poder sob "forma de constrangimento". Essa teoria é propagada pelos acadêmicos foucauldianos em todo o mundo. Mas, espere: é isso verdade? Não seria essa tese tão cara a Foucault também um caso em que a verdade é relativa a um “regime de verdades”, ou seja, tem fins políticos? Se alguém diz “Sim, isso é verdade”, vai ipso facto mergulhar incontinenti em um poço de contradições – afinal, não havíamos dispensado justamente esse tipo de verdade? – e o edifício lógico da epistemologia foucauldiana desmorona como um bolo podre.

Ou então devemos considerar que Foucault é uma espécie de avatar contemporâneo de Friedrich Nietzsche. Nunca foi muito considerado o fato de Foucault, tal como Nietzsche, ser o epítome dos heróis filosóficos, sensíveis e solitários, tendo pensamentos muito profundos – e tão perigosos – para a maioria de nós (exceto para os seguidores de Foucault: para estes, são parte do trabalho para derrotar a “metafísica ocidental”, o “humanismo burguês” e milhares de outros demônios). Foucault sempre promoveu a idéia de que ele mesmo era um Nietzsche redivivo, e o sr. Miller elevou essa comparação à categoria de princípio inquestionável. No prefácio do livro, ele anuncia que a obra não é tanto uma biografia como um prestar contas “da longa luta existencial de um homem em honra do aforismo nietzscheano de ‘vir a ser o que se é’”. Nunca se esqueçam das trinta derradeiras páginas que Foucault escreveu insistindo que “um sujeito escreve para se tornar um outro que ele é”: Foucault era industrioso em prosperar através de seus “paradoxos”. De qualquer forma, quem tem tempo para essas sutilezas lógicas quando se está engajado perigosamente nas “buscas nietzscheanas”, algo que encontramos Foucault perseguindo a cada página do livro do sr. Miller.

Na realidade, a comparação entre Foucault e Nietzsche é uma calúnia para Nietzsche. Devemos admitir, é claro, que Nietzsche tem muita a responder sobre a cabeça de gente como Foucault. Mas qualquer coisa que se pense sobre a filosofia de Nietzsche, não se pode deixar de admirar a coerência e a coragem da sua vida filosófica. Achacado por uma saúde débil
cefaléia, vertigens, severos distúrbios digestivos , Nietzsche deixou sua posição de professor da Universidade de Basel quando tinha pouco mais de trinta anos. Depois disso, ele seguiu uma vida celibatária, isolada e pobre, morando em várias pensões baratas de Itália e Suíça. Ele tinha poucos amigos. Seu trabalho foi quase sempre totalmente ignorado: Além do Bem e o Mal, uma de suas mais importantes obras, vendeu um total de 114 cópias em um ano. Mas ele silenciosamente perseverou.

E Foucault? Foucault depois de freqüentar as escolas francesas de elite - o Liceu Henrique IV, a Escola Normal Superior, a Sorbonne - foi contratado para dar aula na França, Polônia, Suíça, Alemanha e Tunísia. É certo que não ganhava um salário muito alto, mas o promissor filósofo recebia fartos subsídios de seus pais. Nos anos 50, quando era um obscuro professor da Universidade de Uppsala, ele adquiriu o que Didier Eribon chamou de "um magnífico Jaguar bege" (segundo o sr. Miller, branco) e o dirigia como um louco pela cidade, assustando a população de Uppsala. Que afronta às convenções! Eribon lembra-nos ainda que Foucault era um acadêmico politicamente combativo em causas que beneficiassem seus amigos e a si próprio.

Não dá pra dizer que ele alguma vez escondeu seu desprezo pelos estreitos escrúpulos burgueses. Tentar suicídio e jogar pedras na polícia eram requisitos importantes para ser aceito no seu protocolo acadêmico. Enquanto ele esteve lecionando em Clermont-Ferrand no final dos anos 60, por exemplo, ele tornou-se amante de seu assistente Daniel Defert. Em resposta a um requerimento que a faculdade lhe fez para explicar por que ele escolheu Defert como assistente em detrimento de uma senhora mais velha e mais capacitada para o cargo, ele disse: "Porque não gostamos de velhas aqui”.

Foucault em toda parte sempre fez questão de obter a deferência dos intelectuais. Seu livro As Palavras e as Coisas se tornou best-seller em 1966, catapultando-o para a fama internacional. Seu ápice de reconhecimento veio em 1970 quando, na jovem idade de 44 anos, Foucault foi nomeado para o Collège de France, o pináculo da cultura acadêmica francesa. O sr. Miller, como a maioria dos acadêmicos que escreveram sobre Foucault, preza a filosofia foucaultiana de se pôr a si mesmo em risco por causa de suas idéias. "Por mais de uma década
escreveu Miller sobre a reputação de Foucault na época seu elegante crânio raspado foi um emblema de sua coragem política: uma pertinaz resistência às instituições que sufocam o livre espírito e reprimem o 'direito de ser diferente'". Oh, que grande resistência à sociedade burguesa!

Mas Foucault difere de Nietzsche em mais coisas. O fundamental no mundo dos dois filósofos era radicalmente diferente. Foucault, na verdade, era um simulacro de Nietszche. Ele adotou alguma coisa da retórica de Nietzsche sobre o poder e imitou um pouco o histrionismo verbal do alemão. Mas ele nunca teve algo parecido com os insights de Nietzsche e muito menos sua originalidade. Nietzsche pode ter estado seriamente errado em sua apreciação sobre a modernidade; ele pode ter tido erros em parte
no seu extremado secularismo da história; mas poucos homens enfrentaram com tanta determinação e honestidade a questão do niilismo como ele. Foucault apenas flertou com o niilismo que foi para ele somente uma "experiência". O sr. Miller está certo quando enfatiza a importância da "experiência", especialmente as experiências extremas ou "limites" na vida e no trabalho de Foucault; mas ele está errado em achar que isso é uma virtude. Foucault era um viciado em extremismos. Ele era um exemplar de certo tipo do romantismo decadente, tipo para o qual Nietzsche chamou atenção quando escreveu sobre "aquele que sofre com o empobrecimento da vida e implora por sobras, calmarias, redenções pela arte e conhecimento, silêncios, intoxicações, convulsões, anestesias e loucura". A insaciável fissura que Foucault tinha por novidades, sempre em busca de “experiência”, era sinal de fraqueza, não de coragem. Aqui também Nietzsche era melhor exemplo que Foucault. “Os homens hoje vivem demais e pensam de menos”, escreveu Nietzsche em 1880. “Eles sofrem ao mesmo tempo de cólicas e de fome, e então se tornam débeis e débeis, não importa o alimento que consomem. Quem diz hoje ‘não tenho vivido para nada’ é um asno”

O sr. Miller não é inteiramente acrítico. Sobre Loucura e Civilização, por exemplo, ele acrescenta que “as convicções do autor são menos argumentos do que insinuações”. Sobre As Palavras e as Coisas ele nota que o texto é “imperfeito, desajeitado e elíptico”. Mas sua crítica pontual não vai muito longe. No começo do livro, o sr. Miller menciona em passant o incisivo estudo crítico de José Guilherme Merquior em Foucault, um Niilismo de Cátedra (1985). Leitores dessa obra sabem que Merquior, que é conhecido como “um diplomata brasileiro que estudou com Ernest Gellner”, explorou polidamente, mas de forma incisiva, todas os clamores foucaultianos. Merquior tipicamente começou seu estudo com um aceno ao brilhantismo de Foucault. Mas aos poucos vai mostrando o quanto seus argumentos tinham de ordinário, o quanto eram pueris e insustentáveis, o quanto distorcia a história. Qualquer “nova perspectiva” de Foucault pode se opor a qualquer coisa; Merquior conclui: “seus conceitos são indigentes e sua argumentação é débil. Sua real contribuição vale menos do que parece”. A verdade é que Foucault especializou-se em produzir respostas pirotécnicas para falsos problemas. “Nós temos tido sexualidade desde o século XVIII e sexo desde o século XIX”, ele escreveu em História da Sexualidade. “O que nós tivemos depois foi sem dúvida carne”. Sim, e “o intercurso sexual foi inventado em 1963”, como Philip Larkin memoravelmente acrescentou.

Foucault certa vez descreveu seu texto como um “labirinto”. Ele estava certo. A questão é: por que deveríamos querer entrar nele? Como o sr. Miller insiste, o texto de Foucault expressa “o desejo poderoso de ser uma forma de vida”. Mas essa é uma desejável forma de vida? A perversão pessoal de Foucault o envolveu em uma tragédia privada. A celebração pela academia de sua perversão intelectual continua a ser um escândalo público. A carreira desse “representativo homem” do século XX realmente representa uma das maiores fraudes da história intelectual recente.

Notas:
1. The Passion of Michel Foucault, por James Miller (Simon & Schuster, 1993).
2. Biografia escrita por Didier Eribon, Michel Foucault, publicada na França em 1989.
3. O eclipse da tolerância como uma virtude liberal, agora considerada uma “formação reativa”, é um dos mais insidiosos subprodutos da campanha do politicamente correto. Entre outras coisas, o espaço para o debate aberto se estreita dramaticamente ao requerer fidelidade a idéias e valores que esse movimento se dá ao luxo de admitir como verdadeira mesmo sem possuir ao menos mínima comprovação.