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João Belline Burza (1918-1989). |
Em 1986, tive a honra de receber em minha casa o Dr. João Belline Burza, um dos mais brilhantes neurocientistas brasileiros do período entre 1946 e 1964, quando, por motivos políticos, teve de se exilar na União Soviética, até 1974. Quando retornou, estava com seus direitos políticos cassados e foi preso ainda na escada do avião em Viracopos, onde toda a sua família e muitos membros da comunidade da cidade de Ouro Fino, Sul de Minas, lá o esperavam. Ficou preso incomunicável por seis meses sofrendo torturas psicológicas. Com o auxílio de políticos, dentre os quais o ex-governador de São Paulo Franco Montoro, e com a interferência de militares de alto coturno, amigos da família, foi liberado. O Dr. Burza, algum tempo depois de recuperado, parcialmente, diga-se de passagem, voltou a clinicar em São Paulo. Alguns meses depois de sua libertação sofreu um primeiro AVC, provavelmente decorrente das provações e torturas psicológicas recebidas. Sua saúde deteriorou-se rapidamente, quando foi aconselhado por seu médico a retornar para a casa materna em Ouro Fino. Assim o fez e logo granjeou grande amizade e clientela em Ouro Fino, em toda a região do Sul de Minas. Vinham clientes de todo o Brasil para se consultar com ele, dada sua fama de grande e competente médico, além de exemplar figura humana.
Quando foi preso, o Dr. Burza quase teve destruídos os originais do livro que havia escrito por quase dez anos na União Soviética, intitulado: "Cérebro, Neurônio e Sinapse". Continuamente, os militares que o mantinham cativo ameaçavam tomar essa infame medida. Ao final de muito sofrimento, quando foi libertado, teve seus originais devolvidos em finais de 1974. Voltou a clinicar em São Paulo, onde estudou, trabalhou e pesquisou desde moço. Ele era oriundo de uma família de italianos que se estabeleceram em Ouro Fino no início do século XX. Seu pai, Antônio Burza, era o melhor alfaiate da cidade e criou todos os 5 filhos (apenas o Dr. Burza de homem) da melhor forma que pode, usando seus parcos recursos financeiros. Todos se tornaram grandes personagens nesta bela e acolhedora cidade do interior mineiro. O pai falecera havia muitos anos, quando o Dr. Burza era ainda estudante.
Conheci o Dr. Burza através de um amigo comum, o Dr. Wilson Castelo de Almeida, meu antigo professor de Medicina Preventiva na Faculdade de Medicina da UFMG, também de Ouro Fino, e que havia deixado Belo Horizonte para alçar novos voos em São Paulo. Eu havia lançado em 1975 meu primeiro livro, intitulado "Introdução à Psiquiatria Reflexológica", um estudo sobre as teorias e pesquisas do grande cientista russo Ivan Petrovitch Pavlov, prêmio Nobel de medicina em 1904, em decorrência de sua descoberta dos Reflexos Condicionados. Então, eu era um adepto dos métodos pavlovianos na clínica e terapêutica psiquiátricas. Somente mais tarde, fui adotando, cada vez mais, os princípios e os métodos terapêuticos das teorias da aprendizagem e do behaviorismo (Terapia Comportamental). Posteriormente, abracei integralmente a ciência cognitiva e seu corolário terapêutico para transtornos mentais e psicológicos: a Terapia Cognitiva.
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Dr. João Belline Burza e o autor. Outubro de 1980. Visita à sua casa em Ouro Fino (MG). Foto em frente à escada de sua residência. |
O Dr. Burza era uma referência para mim, desde que iniciei minha Residência Médica, em psiquiatria, em 1969, e encetei meus primeiros estudos da teoria pavloviana. Ele já era um mestre e pesquisador consagrado, conhecido largamente no Brasil e no Exterior. Ele já havia estado na União Soviética por algumas vezes, quando trabalhou com alguns dos luminares da neurofisiologia e da psiquiatria pavlovianas. Havia também escrito vários trabalhos muito conhecidos e traduzido um livro, que adquiri em minhas andanças por bibliotecas e sebos do Rio de Janeiro e São Paulo, intitulado "A Ciência dos Sonhos - Teoria Fisiológica", de Feodor Petrovitch Maiorov, publicado em São Paulo, em 1962, pela Editora Fulgor. Maiorov havia sido discípulo e trabalhado com Pavlov, nas décadas de 1920 e 1930. Trabalhou sempre na famosa "Torre do Silêncio", nos laboratórios de Pavlov, em Leningrado (atual São Petersburgo), laboratórios esses que tive a honra e o orgulho de conhecer quando visitei a União Soviética em 1981. Esta viagem, claro, naqueles tempos, não seria possível sem a preciosa recomendação do Dr. Burza. O livro de Maiorov era considerado uma bíblia da ciência dos sonhos pelos pavlovianos. Foi uma relíquia que, quando descobri, em São Paulo, lá pelos idos de 1972/73, imediatamente o adquiri, li e reli inúmeras vezes e o guardo, hoje, em minha biblioteca, com muito carinho. O prólogo, a tradução e o apêndice do livro no Brasil são de autoria do Dr. Burza. No frontispício do mesmo encontra-se reproduzida uma dedicatória de Maiorov ao Dr. Burza, em russo, cuja tradução é a seguinte: "Ao querido João Belline Burza, numa grata recordação e com os meus anseios de que continue a criação desta obra. F. Maiorov. Leningrado, 15-03-1958".
O meu exemplar desta preciosidade, posteriormente, recebeu, a meu pedido, uma dedicatória do próprio Dr. Burza, assim escrito: "A meu caro e ilustre Antônio Carlos: uma grata recordação de nosso encontro em São Paulo e como marca de nossa amizade. Burza. 7/3/80".
Depois de apresentados pelo Dr. Wilson, trocamos correspondência por algum tempo. Em 1979, eu e minha família o visitamos em Ouro Fino, quando fomos recebidos como se fôssemos dignitários estrangeiros na residência de sua mãe, Dona Luiza, onde ficamos alojados no próprio quarto da matriarca. Uma recepção reservada somente aos amigos chegados de muito tempo. E nossa amizade havia começado apenas dois anos antes, quando, após o primeiro contato, enviei-lhe um exemplar de meu livro.
Em sua casa fomos maravilhosamente atendidos por suas duas irmãs solteiras, que residiam na mesma casa, Maria Luiza e Julieta Burza, duas figura honoráveis da cidade de Ouro Fino. A casa dos Burza era por demais conhecida na cidade, pois era um verdadeiro museu. Em sua sala de visitas havia uma coleção de peças de arte, em forma de esculturas, quadros e enfeites os mais diversos, de origem italiana e alguns russos. Dentre estes últimos se destacava um enorme samovar, de quase um metro de altura, que havia sido trazido de Moscou para o Brasil na bagagem de um diplomata. Só assim esta valiosíssima peça, do século XIX, poderia sair da União Soviética, já que havia estritas leis proibindo a exportação de antiguidades. Havia pinturas feitas nas próprias paredes da sala, do alpendre e de alguns quartos, o que era comum em casas de famílias cultas no Brasil, do primeiro terço do século XX. Em geral, reproduziam temas bucólicos, tais como jardins, campos, matas, flores e animais silvestres. Foram dias inesquecíveis, cerca de três, que passamos junto aos Burza. Meus filhos eram crianças e até hoje se lembram das pessoas e das peças de arte dos Burza. Voltamos lá mais umas duas vezes.
As fotos a seguir foram extraídas do blog da jornalista Clara Favilla, natural de Ouro Fino e residente em Brasília, grande amiga da família Burza. O link da Sra. Favilla é:
http://blogdacidadedeourofino.blogspot.com.br/2009/09/linda-casa-da-julieta-burza.html
(recomendamos abri-lo com o Google Chrome).
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A casa da família Burza. O belo jardim e o estilo arquitetônico art-nouveau, de princípio do século XX. Um monumento arquitetônico que deveria ser tombado pela Prefeitura Municipal de Ouro Fino. Foto Clara Favilla. |
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A escada dando para o alpendre com seus afrescos nas paredes. Foto Clara Favilla. |
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Afresco à esquerda da entrada.
Foto Clara Favilla. |
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Afrescos em duas paredes à direita da entrada.
Foto Clara Favilla. |
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Sala de visitas da casa da família Burza. Em primeiro plano, o piano de calda de Julieta Burza.
Foto Clara Favilla. |
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Cristaleira e objetos de arte importados da Itália.
Foto Clara Favilla. |
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Móveis do início do século XX. Na parede fotos do Sr. Antônio Burza, o patriarca, e do rei da Itália, Vitório Emmanuelle III. Sobre o móvel, foto de formatura do Dr. João Belline Burza.
Foto Clara Favilla. |
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Espelho e lavabo de porcelanas italianas.
Foto Clara Favilla. |
Em 28 de agosto de 1986, compareci à Bienal do Livro de São Paulo, realizada no Ibirapuera, onde o Dr. Burza lançou, finalmente, seu livro "Cérebro, Neurônio, Sinapse - Teoria do sistema funcional de P.K. Anohin, seguidor avançado de I.P. Pavlov". Senti toda a sua felicidade naqueles momentos de glória e reconhecimento e eu não poderia estar ausente. Guardo também com muito carinho, em minhas estantes de livros, esta obra imorredoura. Estava ele acompanhado de sua dileta irmã e colaboradora, quase secretária, Maria Luiza Burza. Sua dedicatória, com sua letra já bastante tremida, e quase ilegível em função de outros AVCs que sofrera, foi: "Para Antônio Carlos, a homenagem e a admiração do Burza. 28/8/86". Guardo comigo algumas cartas que ele me enviou, onde se pode ver, nitidamente, a deterioração de sua escrita em função do agravamento de seu quadro neurológico.


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Moscou, janeiro de 1958. Casa dos Cientistas. Jubileu P.K. Anokhin (60o. aniversário). Da esquerda para a direita: Prof. V.V. Parin, vice-presidente da Academia de Ciências Médicas da URSS; Anokhin; Prof. Horsley Gantt, chefe dos Laboratórios Pavlovianos da Universidade Johns Hopkins (Estados Unidos) e Dr. J.B. Burza. In: Burza, J.B. Cérebro, neurônio, sinapse. São Paulo. Ed. Ícone, 1986. Pg. 78. |
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São Paulo, agosto de 1959. Aeroporto de Congonhas, quando da visita do Prof. P.K. Anokhin ao Brasil. Da esquerda para a direita: Núncio Carelli; Dr. Ideval Alcântara de Carvalho; Oscar de Arruda Moraes; Dr. J.B. Burza. Sentado, P.K. Anokhin, ladeado pela família Carelli. In: Burza, J.B. Cérebro, neurônio, sinapse. São Paulo. Ed. Ícone, 1986. Pg. 80. |
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Moscou, janeiro de 1968. Cátedra de Fisiologia do 1o. Instituto de Medicina de Moscou. Jubileu do Acadêmico P. K. Anokhin (70o. aniversário). Da esquerda para a direita: Prof. V.A. Chidlovski, chefe da Cátedra de Fisiologia do Instituto de Aperfeiçoamento Médico de Moscou; P.K. Anokhin; Prof. Igor Orlov, chefe do laboratório de Neuroquímica Funcional do Instituto Setchenov de Fisiologia; Dr. J.B. Burza. In: Burza, J.B. Cérebro, neurônio, sinapse. São Paulo. Ed. Ícone, 1986. Pg. 84. |
Em novembro de 1986, convenci o Prof. Austregésilo de Mendonça, proprietário da Casa de Saúde Santa Maria, onde eu trabalhava há vários anos, grande figura humana, que já conhecia o Dr. Burza da década de 1950 e início de 1960, quando este era ainda professor da Universidade de São Paulo, a convidá-lo para vir a Belo Horizonte. O Prof. Austregésilo, muito bem articulado, apoiado pelo firme incentivo do Prof. Paulo Saraiva, da Academia Mineira de Medicina, meu grande amigo e também médico no mesmo hospital, organizara com a Diretoria da Associação Médica de Minas Gerais a entrega do título de Sócio Honorário da AMMG para o Dr. Burza.
Assim é que recebemos em nossa casa o Dr. João Belline Burza, com seu ajudante, meio cuidador dadas suas dificuldades psicomotoras, e suas irmãs Maria Luiza e Julieta Burza. À noite, era uma quarta-feira, dia das tradicionais reuniões do Centro de Estudos Austregésilo de Mendonça, houve a sessão de gala de entrega do título, fornecido pelo Presidente da AMMG. Na ocasião, proferi o discurso, escrito, dada a variedade e riqueza da vida do Dr. Burza, para que não houvesse o mínimo erro. Ficamos todos emocionados. Posteriormente, o Prof. Austregésilo, com sua habitual verve, me confidenciou que ficou preocupado com o estado emocional do homenageado e receou que ele tivesse uma apoplexia (AVC fatal) durante a solenidade. Este texto agora tenho o orgulho de reproduzir aqui, depois de tantos anos guardado em meus arquivos. Faço-o com a certeza de que homenageio uma das figuras humanas mais importantes de minha vida, dentre tantas outras que conheci.
O Dr. Burza faleceu em decorrência de outro AVC (tivera vários) em 1989, logo após meu retorno de um estágio na França, em 1988. Compareci à Missa de Sétimo Dia em Ouro Fino, onde, pela última vez, tive contato com esta bela casa. Dele guardo as mais gratas recordações e serei eternamente reconhecido a ele pelas suas orientações, pelo seu exemplo de trabalho e seriedade. Admiráveis em sua personalidade foram suas convicções políticas e ideológicas. Foi um marxista convicto até o fim. Apesar de eu não mais comungar dos mesmos ideais marxistas-leninistas, o que eu fizera em minha juventude, sempre respeitei suas posições firmes e nunca discutimos qualquer tema que fosse que envolvesse política ou ideologia. Uma vez, quando de um de nossos últimos encontros, lembro-me de ter-lhe perguntado se ainda acreditava nos princípios marxistas. Respondeu-me incontinenti: "Acredito como agora vejo a palma de minha mão". Fiquei impressionado com suas convicções e certezas. Não mais falamos sobre isso. Nossas conversas, fora os temas neurocientíficos, eram de trivialidades e generalidades. Geralmente, eu o ouvia absorto relatar suas experiências de vida na União Soviética, país que conheceu profundamente. Tanto que se casou com uma cidadã soviética, que lhe antecedeu no seu retorno ao Brasil. A ela nada ocorreu quando chegou, dada a recente abertura diplomática do Brasil com a União Soviética, que a ditadura militar (o governo era de Geisel) havia tomado a iniciativa de realizar em função de boas perspectivas de negócios com o gigante euro-asiático.
Abaixo segue-se o texto de minha fala.
https://docs.google.com/file/d/0B9zBbq3OaOaNeHFyczh6Q0d6cFU/edit
(recomendamos abri-lo com o Google Chrome).
Para aqueles que desejarem conhecer mais sobre este grande cientista brasileiro recomendo uma visita ao link abaixo, da revista Histórica, do Arquivo Público do Estado de São Paulo, onde há um excelente texto de Luciana da Conceição Feltrin sobre o Dr. João Belline Burza.
http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao39/materia03/
(recomendamos abri-lo com o Google Chrome).
A irmã do Dr. Burza, Maria Luiza, faleceu há aproximadamente dez anos. No início de maio deste ano de 2013 fui surpreendido com a notícia do falecimento de Julieta Burza. A tristeza que me invadiu não pode ser aquilatada em palavras.
Que todos descansem em paz!
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Carta que o Dr. Burza enviou, de Moscou, em 1968, para seu colega Prof. Carlos da Silva Lacaz, um dos mais eminentes professores da história da USP. Cópia gentilmente enviada pelo seu sobrinho Dr. Leonardo Piovesan Mendonça, médico geriatra em São Paulo. |
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Carta que o Dr. Burza escreveu para o Prof. Lacaz, de Ouro Fino, em 1978. Cortesia do Dr. Leonardo Piovesan Mendonça. |
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Dr. Burza, citado na Revista Paulista de Medicina, em 1984. Cortesia do Dr. Leonardo Piovesan Mendonça. |
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Convite para a inauguração do retrato do Dr. Burza na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em 1989. Cortesia do Dr. Leonardo Piovesan Mendonça. |