Em 1988, quando de um curso na Universidade de Limoges, França, tivemos a oportunidade de conhecer o Prof. G. Abraham, psiquiatra e psicanalista das Universidades de Genebra e Turim. Um profissional e pesquisador brilhante. Logo adquirimos seu livro Introduction à la Psychogériatrie, que ele escreveu em coautoria com o Prof. I. Simenone, que também conheci neste mesmo evento, publicado pela Ed. Simep, de Paris, em 1984. Apaixonamo-nos por seu texto e, logo após meu retorno ao Brasil, traduzi o capítulo abaixo, em 1990. Desde então, esta brilhante descrição psicológica do envelhecimento (como vemos o nosso próprio envelhecimento) nos acompanha em todos os cursos de psicogeriatria que temos ministrado neste último quarto de século. Trata-se de uma obra fundamental para quem deseja conhecer mais sobre as diversas visões psicológicas do envelhecimento.
Disponibilizamos aqui, para todos aqueles que seguem nosso blog, este texto fundamental em gerontologia e psicogeriatria.
ELOGIO DO
ENVELHECIMENTO
G. Abraham (Professor dos Departamentos de Psiquiatria das
Universidades de Genebra e Turim).
Extraído de Introduction à la Psychogériatrie de I. Simeone e G.
Abraham. Ed. Simep, Paris, 1984.
Tradução de Antônio Carlos de Oliveira Corrêa, 1990.
I- Quando Começa o
Envelhecimento?
A cerimônia biológica do nascimento é indubitavelmente considerada
pelo ser humano como um fato de importância extraordinária. Ela marca o começo
da vida, da qual não se conhece bem as razões nem os significados, mas à qual
se reconhece uma prenhez pragmática representada, acima de tudo, por aquilo que
se convencionou chamar de a consciência do existir. Não é
menos certo que o nascimento é descrito, do ponto de vista psicológico, como um
fenômeno traumático. Bem mais, se o parto é considerado como um modelo único de todas as
manifestações sucessivas da angústia (Rank), a idéia do nascimento
traumático é associada paralelamente à convicção de que, beneficiando-se no ventre
materno de prerrogativas insubstituíveis, o feto seria,
no
momento do nascimento, expulso de uma situação de bem-estar, na qual predominam
a proteção e a estabilidade.
Excluído do ventre materno, esse feto que se transforma em nascituro,
seria condenado à permanência do risco e à instabilidade instituída como regra.
Em suma, o nascimento provocaria o desaparecimento da inocência
biológica
primária e com a angústia que este nascimento comporta, surgiriam o medo, a dor
e a incerteza. Se o nascimento é julgado como um traumatismo, é preciso concluir
que, desde seu começo, a vida é considerada pelo ser humano com desconfiança,
quando ele lhe empresta atributos mais satisfatórios no curso de sua fase
potencial, do mesmo modo que isto parece se concretizar no seio materno. Com o medo, a
ansiedade, a dor e a incerteza, começaria para nós, nascidos com dificuldade,
uma decadência inevitável: é aí que situar-se-ia o início
efetivo
do envelhecimento. A vida não seria, em definitivo, mais do que um processo
de envelhecimento (grifo do tradutor).
A família que concebeu a criança e que a recebe em seu seio apresenta-se como uma entidade que deseja tornar-lhe o aparecimento da vida como um acontecimento satisfatório e positivo.
Quer se deseje ou não, acaba-se sempre por encontrar em qualquer um que nasce
(especialmente se nasce em nossa família) uma parte de nós mesmos que recomeça
a viver. Entretanto, esta família amiga e acolhedora que de uma certa maneira
busca prolongar o ventre materno ou atenuar as desagradáveis consequências
previstas em seguida ao seu abandono, esta família amiga traz em seu seio inúmeros outros
fatores de ansiedade e de perigos para o ser que vem ao mundo; ela impõe um
caráter, exigências, regras, separações, competições, frustrações. Compensadora
em aparência, as desvantagens inerentes à
individualização do novo ser, esmagam frequentemente este último com o propósito evidente de fazer obstáculo a esta mesma individualização,
em favor da predominância das demandas do grupo. Em todos os casos, a tomada de
consciência da existência que o novo ser realizará, pouco a pouco permitir-lhe-á
igualmente constatar a realidade de um risco fatal de isolamento
individualista. O fato de ser si mesmo significará estar separado das coisas e
de alguém. A maturação e mesmo o envelhecimento fundam-se sobre esta
individualização progressiva, sobre um desprendimento de tudo aquilo que
poderia não ser apropriado a si mesmo para buscar nos limites compactos da
individualização pessoal esta garantia e esta validade do viver que o
nascimento tinha esboçado, mas não definido.
A despeito das tentativas feitas pela família, o grupo, a sociedade, para neutralizar o processo de individualização, de fato,
este prossegue seu trabalho de separação, de distanciamento e de egocentrismo.
Mergulhado no anonimato do grupo, nosso envelhecimento poderia ser uma espécie
de meio termo do envelhecimento global. Então, bem individualizados, nós carregamos
sobre nossos ombros nosso envelhecimento pessoal; não podemos nem diluí-lo nem
dissimulá-Io. Envelhecer juntos pode fazer crer que se está um pouco menos
velho. Na realidade, envelhecer a dois não é mais do que o confronto de envelhecimentos
próximos, mas diferentes.
A tomada de consciência do existir vai de par com a iniciação de uma
certa vontade de viver. Ela é um pouco similar àquilo que Bergson descreveu
como o elan vital. Entretanto, é possível
assinalar desde o começo o que se denomina de ambivalência, quer dizer, a
coexistência de dois vetores paralelos e opostos que se contradizem
alternativamente. Da mesma maneira que ao nascimento, cerimônia biológica
inicial da vida, opõe-se a idéia de seu caráter traumático, a vontade de viver,
de assumir pessoalmente o desejo e a gestão da existência, é contrariada por
uma vontade de recolhimento, de abandono e de morte, que não é unicamente o
apanágio de manifestações depressivas. Pelo contrário, esta vontade de morrer
descrita pelos filósofos, poetas, psicólogos, parece suficientemente potente para poder compensar todo elan
vital. Por outro lado, a noção de um ventre materno suceptível de permitir um
estado de graça pré-natal pode coincidir com uma vontade de retornar a ele e,
por este fato, a uma forma de morte correspondente ao nirvana. De qualquer
maneira é justo dizer, partindo do conhecimento do conjunto do processo de
envelhecimento, que este faz parte, tanto da vontade progressiva de viver, como
desta vontade obstinada de morrer, não obstante o fato de que se queira atribuir
à vida todas as qualidades do que se convencionou chamar o bem e à morte as
desta entidade conhecida como sendo o mal. Na realidade, estas atribuições
drásticas não parecem exatas. Às vezes a aspiração do elan vital parece aquela
de avançar em uma direção paradoxal, em direção a um retorno, à não vida que precedia
a concepção. Ela pode se servir das características típicas desta entidade
positiva descrita como o bem quando de fato a superabundância da vida com suas
exigências, seus desejos, suas dores e seus imperativos pulsionais, pode
trazer, justamente, a sensação de que o fenômeno vital em seu conjunto apresenta-se
como qualquer coisa de negativo e de maléfico. Reencontra-se com este propósito
toda a problemática levantada por Freud em seu conceito do instinto de morte
que opõe-se dialeticamente ao instinto da vida.
Mesmo a saúde e aquilo que se convencionou chamar a normalidade podem
ser consideradas como uma adaptação coletiva que comporta obrigações e
controles que acabam por incomodar-nos. A exuberância, a explosão dos fenômenos
vitais, requerem de nossa parte uma tomada de posição constante, uma
comprovação constante quanto a seus resultados e a sua validade coletiva. Não é
questão jamais de poder abandonar-se tranquilamente, de degustar a vida em
solidão tranquila, mas, sobretudo, de confrontar-se sem cessar com regras
estabelecidas pelos homens que nos precederam na existência e que parecem
pedir-nos contas em relação à maneira pela qual nós utilizamos o ardor vital do
qual somos o objeto. Ser si mesmo não permite jamais chegar a uma situação tal que,
para alguém, a vida fosse verdadeiramente uma surpresa e uma novidade. Ser si
mesmo consiste mais frequentemente em imitar alguma coisa que parece mais
conveniente em relação àquilo que é proposto, de maneira que os parâmetros que
nós chamamos desenvolvimento e que deveriam estar conforme nossa individualização
específica, sejam já indicados como elementos que, de uma parte, apareçam como
benéficos e, de outra parte, insiram-se no contexto da evolução como se
existisse no ser humano uma espécie de medo de descobrir nas manifestações do desenvolvimento
do elan muitos outros sinais de enfraquecimento deste elan e do aparecimento
dos fenômenos opostos de degradação. Entretanto, mesmo o conceito de felicidade
está submetido a um duplo uso; parece ligado, de um lado, à tendência típica à expansão
própria da vida e aos seus impulsos e, de outro, à atenuação de um frenesi
vital excessivo e a seu redimensionamento nos limites mais tranquilos e já
decadentes.
No conjunto das relações humanas, os elementos compreendidos no termo
global de comunicações referem-se a esta ambivalência a respeito da vida. De
fato, se é possível entendermos e comunicarmos tanto através de fatores
implícitos no desenvolvimento e no ardor da vitalidade, é igualmente possível
"a contrario" exprimirmos através daquilo que é comum à degradação e
ao envelhecimento; poetas, artistas, linguistas e outros especialistas da
comunicação porque servidos, para realizar suas obras de maneira válida, do
elan vital fonte de promessas, todas ilusórias, sejam elas de deficiências, carências,
desilusões ligadas ao declínio e à perda do élan vital. visto nestes termos o
processo involutivo que já nos assistiria desde o começo da vida, não pode ser
julgado como um acontecimento puramente acidental que prejudicaria o desenvolvimento
biológico com uma incoerência incompreensível. Em compensação, o fenômeno
involutivoparece possuir uma dupla textura: aquela do opositor da evolução e do
elan vital e aquela comparável a um molde que conteria o elan vital em dimensões
de uma maturação adequada e ordenada. O processo involutivo representaria, em
suma, um contrapeso indispensável que constituiria em relação à brutalidade
explosiva do elan vital, uma possibilidade única de dar-lhe uma significação.
Uma vida livre de toda contra-reação involutiva poderia ser desordenada e absurda
enquando uma vida condicionada e limitada pelo processo involutivo tomaria uma
dimensão aceitável, no seio da qual valores precisos poderiam concentrar-se e
definir-se.
Regredir, por exemplo, não seria somente o contrário de evoluir, mas
uma forma particular de maturação e de individualização que manifestar-se-ia
através do enfraquecimento do empurrão biológico inicial e constituiria, desta
forma, a base de uma historicidade individual típica; é como se a matéria bruta
das primeiras pulsações da vida se dispersasse para deixar o lugar para
motivações cada vez mais pessoais, cada vez mais ligadas aos acontecimentos
progressivamente mais significativos de nosso mundo. Consequentemente, somente
a involução garantiria a certeza da individualidade e do desenvolvimento
efetivo. Somente uma evoluçao sufuciente poderia permitir, de resto, o processo
involutivo correspondente. Estar em estado de regressão consistiria em poder
dar de maneira apropriada uma forma à impulsividade desordenada que está em
nós. Desta forma, a involução é um processo relativo que modela e completa toda
forma de desenvolvimento. Todo desenvolvimento ininterrupto não teria mais
sentido e, acima de tudo, não teria mais história.
Os controles sociais sobre nossa individualidade, as tentativas
incansáveis da sociedade para nos confundir na massa, os modelos pré-fabricados
que ela nos propõe continuamente com o objetivo de assegurar a uniformidade,
tudo isso poderia igualmente constituir um esforço que tenha por objetivo
anular a morte de alguém para reabsorvê-Ia no conjunto, uma tentativa que tenha
por objetivo criar a impressão de que o processo involutivo de alguém que não
seria mais do que um fato relativo. No grupo, à involução de um corresponde a
evolução, pelo menos aparente, do outro; o envelhecimento se reduz a uma cifra cronológica
e a um ponto de referência esquemática de tipo biológica. Entretanto, cada um
de nós se reconhece muito melhor em sua própria involução do que em seu próprio
desenvolvimento. A sociedade prima o desenvolvimento porque este é justamente
muito menos pessoal e muito mais assimilável do que aquilo que se chama a
"decadência".
De outra parte, pode-se imaginar que o desejo mais caro do homem seja
o de prolongar indefinidamente a juventude, de poder construir uma juventude
eterna. Na realidade, todas as épocas da vida, aí compreendida a
velhice, estão submetidas a esta aspiração, a esta veleidade de poder durar até
o infinito, de ser preservado da usura do tempo. A esperança de poder prolongar
a velhice e de conseguir atingir uma juventude eterna, pouco possível, por uma
velhice eterna, persiste na imaginação humana. Toda época da vida é relativa às
outras épocas. Se nascêssemos já velhos este estado seria provavelmente
considerado por nós como a melhor das idades.
Aparentemente nós depreciamos a velhice porque ela nos aparece como um
enfraquecimento, uma perda da juventude; bem mais, a perda da juventude
aparece-nos como uma doença no sentido completo do termo. Na prática, a
juventude é uma época comum a todos, que não tem para todo futuro, a não ser
uma não juventude, a qual, de resto, não será prerrogativa de alguém, quer
dizer, esta não juventude representará uma espécie de escolha seletiva da
natureza.
É o envelhecimento verdadeiramente inato ao homem? Está ele
potencialmente presente desde o nascimento tal como um componente da vida ou
constitui-se num fato adquirido que aprender-se-ia no curso da existência e que
poder-se-ia sempre perfazer e, por que não, prolongar?
A velhice pode ser também concebida, antes, como uma aquisição do que
como um destino, um pouco como a identidade individual que se adquire na
aparência, imediatamente com dificuldade destacada do ventre materno, mas que,
na realidade constitui-se, pouco a pouco, numa verdadeira aprendizagem, no curso
da qual aprendemos a sermos nós mesmos. Esta identidade não é, além disto, um
fato puramente individual, mas refere-se às contribuições e conceitos
coletivos. Na prática, também, o envelhecimento não é jamais um fenômeno
isolado: não se envelhece só, não se é velho só, sempre se é velho, repetimos,
em relação aos outros ou em relação a um conceito de nosso passado, conceito fundado
igualmente em grande parte, sobre bases sociais e coletivas.
Sob este prisma, envelhece-se sempre ao mesmo tempo que alguém, se é
sempre, e acima de tudo, o velho de alguém. É verdadeiro, contudo, que o
aspecto comunitário do envelhecimento não constitui mais do que um elemento
secundário. Encontra-se mais ligado, com efeito, à comunidade pela aceitação de
seu próprio desenvolvimento do que pela aceitação de seu próprio envelhecimento.
O desenvolvimento socializa ao passo que o envelhecimento isola, e este
isolamento contribui ainda para acentuar a personalidade: o adolescente, por
exemplo, busca ecrê. Ele se personaliza através de seus atos, seja através de
um reconhecimento social, que em realidade poderia revelar-se uma pseudo-personalização,
ao passo que o velho se personaliza por ele mesmo, sem dever recorrer a uma
confirmação através dos valores sociais que, sendo coletivos, são enganosos
para a individualização. Uma medalha concedida pela sociedade, que deveria
trazer uma distinção, assemelha, em verdade, o indivíduo a uma categoria
coletiva, à categoria daqueles que merecem. Desta forma, a sociedade pode
servir-se de outros fatores de distinção entre seus membros, mas estes fatores
não fazem, mais frequentemente, do que acentuar uma espécie de
pseudo-identidade.
A título de exemplo, podemos citar as características sexuais. O fato
de termos um sexo nos distingue ao mesmo tempo em que nos coloca em uma
categoria.
Uma das características importantesque contribui de maneira certa para
a construçãoda identidade social é nossa dimensão cronológica. Por sermos nós
mesmos, não dispomos unicamentede um aspecto psico-orgânicodado, situado no
espaço, mas somos o objeto de um coeficiente cronológicoque nos marca até
condicionar na base a espontaneidade o desabrochar de nossa verdadeira pessoa.
Em conclusão, humana não pode ser processo involutivo.O tudo que se
apresenta como válido na vida reatado de uma maneira ou de outra ao amor, ele
mesmo, não escapa a esta regra. Quando uma pessoa diz a outra que ela o ama,
isto implica imediatamente em uma demanda. Quanto tempo ela o amará? Quanto tempo
durará o amor?
Isto quer dizer que não somente a cronologia do amor constitui um
fator não desprezível neste acontecimento emotivo, mas também que o amor, ele
mesmo, inserir-se-á no processo involutivo. De fato, o amor envelhece, ele
também, e envelhecer por amor pode significar enfraquecer-se, desabar-se,
tornar-se menos interessante, mas isto pode igualmente significar durar, persistir,
ir além da ênfase momentânea.
Outras emoções fortes ou fracas participam deste envelhecimento. A
agressividade, tanto quanto o amor, está submetida a transformações
involutivas. Uma agressividade que dura e que envelhece pode ser significativa,
mais tônica ou pode ser uma agressividade tornada crônica que perdeu sua
mordacidade e que persiste somente pela força da inércia. Estar sempre agressivo
ao envelhecer pode querer dizer conservar um mau caráter ou ter perdido a
capacidade de aprender a sabedoria, mas pode ser um sinal, como o sabemos, de
conservação da vitalidade. Como se sabe também, a agressividade pode não exteriorizar-se
e ser dirigida contra aquele que a engendra. Ela contribuiria, neste caso, para
criar um estado depressivo.
Sabemos quanto são frequentes, com efeito, os episódios depressivos
nas pessoas idosas. A auto-agressão poderia participar ainda mais d~retamente
no envelhecimento; seria mesmo possível perguntar-se se envelhecer não seria
uma forma de ataque contra si mesmo, de auto-destruição. No curso do
envelhecimento, a agressividade pode ser uma demonstração das capacidades energéticas
de uma força residual.
Mas, em suma, o envelhecimento das emoções não significa sempre o seu
enfraquecimento, sua degradação: uma involução emotiva pode se constituir em
seu aperfeiçoamento, em sua personalização autêntica.
Somos continuamente confrontados com o seguinte paradoxo: na plenitude
da vitalidade parecemos ter ideais quase sobrehumanos, que a juventude deveria
permitir transformar-se em apoteose incomensurável e nós fazemos projetos como
se, fascinados pelo elan vital, quiséssemos construir uma vida especial e
extraordinária, que seja totalmente nossa e, ao mesmo tempo, vencer ao ponto de
suscitar a inveja e o interesse dos outros. Na realidade, se consideramos bem
as coisas, nossa aspiração mais coerente é envelhecer e perscrutar o domínio do
envelhecimento, que imaginamos ser quase ilimitado, vivendo, justamente, como
uma garantia do sucesso da existência.
Fascinados e seduzidos por múltiplos modelos que nos são propostos e que
buscamos construir ou ter prontos para nosso futuro, acabamos por fazer do envelhecimento
nosso único paradoxo, continuamos a ser dominados pela ambivalência que se instala
face ao envelhecimento e que nos deixa perplexos. O envelhecimento aparece-nos,
em outros termos, como o meio de reunir um período de homeostasia, de
equilíbrio e de estabilidade, se bem que através de sacrifícios biológicos, de limitações
e de abdicações, seria possível, enfim, chegar à impressão de que o tempo pára.
Este envelhecimento pode, entretanto, aparecer-nos como um risco contínuo, um
estado de crise quase insegurança. permanente, o triunfo da instabilidade e da
II- Função Psicológica do Envelhecimento
Quando falamos de envelhecimento referimo-nos, em geral, a um problema
global, ainda que o indivíduo se componha de órgãos diferentes e funções que só
podem envelhecer de maneira diferente e variável. Qual é a parte de nós mesmos
que envelhece mais lentamente ou mais tard~amente ?
Existem, é certo, células pertencentes a um dado órgão ou sistema que,
por toda uma série de circunstâncias que não conhecemos bem, envelhecem de
maneira desigual, mais ou menos lentamente.
Além disso, a velhice é um fenômeno visceral celular ou é um fenômeno
essencialmente mental? É preciso igualmente considerar que o mundo envelhece no
seu conjunto e nós com ele; por este fato o que parece ser a juventude de
amanhã é, na realidade, um outro aspecto do envelhecimento do mundo; este será mais
velho no futuro do que é hoje e do que foi ontem. Devemos ainda acrescentar que
a velhice não é unicamente uma condenação que sofremos, mas também um estado
que deve fascinar-nos, porque ele se prepara lentamente em nós. É, em suma,
nosso futuro, nosso modo típico de reagir aos acontecimentos.
Observemos bem nosso organismo: o órgão considerado como velho seria
menos importante em relação àqueles mais o mais jovens?
O órgão que envelheceu mais ou os órgãos que envelheceram mais
poderiam revelar-se, pelo contrário, aqueles que se transformaram em órgãos
mais importantes, mais válidos, mais provados, mais seguros, 'mais capazes no
momento em que os órgãos ou as funções e os tecidos mais jovens poderiam, em
definitivo, ser partes de nosso corpo ainda imaturos, menos seguros, aos quais
nosso organismo, no seu conjunto, poderia conceder uma confiança restrita. Além
do mais, no domínio do espírito, a idéia de que persiste antes, a idéia tenaz à
qual parecemos ligados de uma maneira rígida cristalizada,não é aquela que
permaneceu mais jovem, aquela que, de certa forma, não quis mudar, não quis envelhecer?
No oposto, a idéia nova, aquela que talvez aceitamos com reticências, com
desconfiança, seria, de certa forma, ..alguma coisa que inserimosem nós mais
tardiamentee, por isto, uma idéia muito mais velha pelo fato de que ela só
pertence agora ao nosso pensamento. Ela poderia ser em todo caso muito mais instável
e susceptível de involução, do que uma idéia partida de longe, que amadureceu
conosco, que se enfraqueceu e poderia constituir a persistência desta parte
jovem de nós mesmos, que jamais desaparece completamente. Se a infância é considerada
como um período favorável e fantástico que devemos irremediavelmente perder, o
fato de liberar-se, de afastar-se da infância é, entretanto,vivido como um
sinal de maturação e de progresso.Se a fraquezada criança, que necessitados
cuidados e da proteçãodos adultos,constituium elemento de restrição para a
criança mesma, o enfraquecimentoque encontramos na velhice parece redimensionar
as pretensões excessivas do adulto maduro em matéria de afirmação e força,
favorecendo o apoio sobre os outros, uma verdadeira troca recíproca. Desta
forma o filtro do tempo permite as escolhas mais adequadas, as verificações e
as contraprovas necessárias a toda experiência existencial válida.
O corpo e o espaço que nos cerca pertence-nos antes do que quando eles
eram prova da espacialidade incondicionada da juventude com suas pretensões
possessivas ilimitadas. Se, em certo sentido, o escoamento da idade pode
constituir um constrangimento cronobiológico ao qual não podemos nos subtrair, em
outro sentido ele é o caminho importante e necessário ao nosso aperfeiçoamento,
ao nosso desenvolvimento psíquico e ao alargamento de nosso horizonte existencial. De toda maneira a involução
não pode retirar-nos o tempo que possuímos, a quantidade de experiência
adquirida e a certeza do vivido.
O passado é doravante nosso "ser" bem antes que o incerto futuro.
O que nos precedeu só faz submeter tudo que nos chega a uma espécie de exame
ou, de um certo ponto de vista, ele representa a demonstração possível, a
explicação eficaz e efetiva de nosso desenvolvimento. Por conseguinte, a
involução significa igualmente conservação,maturação, intensificaçãoe reforço
ao mesmo tempo que pode ser enfraquecimento, lentificação.
Envelhecer quer dizer contemplar-se em um espelho, dar uma parada.
Involuir acarreta recomeçar em uma outra direção, a repetir-se de maneira
econômica.
O sofrimento é menos absurdo, a doença mais familiar, a surpresa menos
surpreendente. As emoções são atenuadas pelo uso, as afetos são liberadas do
desejo de conquista. A coragem tornase coragem de ser e o medo, sobretudo, um
medo de si mesmo.
Muitas coisas tomam seu tempo na velhice entre as quais a sexualidade;
a título de exemplo, a ereção faz-se mais lentamente no homem e o desejo de
concluir o ato sexual é menos imperioso. Na velhice a vida está muito mais
próxima de uma perspectiva panorâmica do sentido da escolha e o sucesso de
nossa vida inteira.
Desenvolver-se é uma maneira de esperar, de preparar, envelhecer é, em
compensação, uma maneira de se preocupar. Sentimos nosso desenvolvimento como
um dever da natureza em relação a nós. Envelhecer é, por outro lado, um
presente que não merecemos, é agradável porque ele não nos é devido. É envelhecendo
que o ser humano atinge seu mais alto grau de humanização. Não querer
envelhecer é recusar o conjunto do que temos sido capazes de fazer e de obter.
Pode-se pensar que a criança é ainda preservada da contaminação sócio-cultural,
ao passo que o velho seria a vítima desta contaminação. É, entretanto, possível
que o velho caminhe, estando pouco a pouco liberado das quotas e das diferentes
influências culturais. Ele teria resistido a esta poluição cultural eventual,
aceitando-a quando podia julgá-Ia útil e significativa e rejeitando praticamente
o resto.
No simbolismo habitual tudo que vem primeiro goza de uma grande
vantagem em relação ao que se segue. Neste sentido a infância é melhor do que a
juventude, a juventude do que a maturidade e a maturidade do que a velhice.
Entretanto, busca-se frequentemente revalorizar aquilo que se segue, busca-se
salvá- 10, prometendo em relação àquilo que "vem após", vantagens das
quais não se dispõe ainda e encoranjando as pessoas a renunciar, a sacrificar
aquilo que vem primeiro para melhor saborear o que vem após. Mas o que
"vem após", e que é sempre identificado com o previsível, implica
inaceitavelmente na perda do que está em primeiro. O primeiro corresponde
estruturalmente ao ser nele mesmo, a presença vital, enquanto aquilo que se segue,
aquilo que "vem após" corresponde naturalmente ao futuro. E no ser,
em sua existência imediata, que parece se situar a essência profunda da vida,
ao passo que o futuro não é mais do que um "a se fazer" ou um
"ser já feito" sobre a base daquilo que fomos precedentemente.
De sorte que se a experiência nos enriquece de elementos novos, se ela
nos dá, pelo menos, a impressão da mudança, ela aliena, contudo, aquilo que a
precede e, bem entendido, a enfraquece. A glorificação humana e social da
inocência não se refere somente à falta de conhecimento, à inexperiência e à candura,
ela refere-se igualmente a este defeito de contaminação em relação ao futuro e
à modificação que assusta e engendra a noção de uma vida que se perde em se
construindo. Todavia, a estrutura da existência em seu estágio inicial não é
ainda provada nem assegurada quando a estrutura efetiva torna-se aquela que
engaja-se no vivido e na maneira na qual este último se transforma: a estrutura
do começo é potencial e, de certa forma, ilusória, a estrutura autêntica e
individualizada só pode ser aquela que foi submetida à confrontação
existencial. Por isto a posse do elan biológico primário não pode ser mantida
sob pena de inutilidade e de absurdo: ela deve dialogar com a aquisição progressiva
da experiência vital, aquisição que é perpetuamente colocada em questão pelo
futuro, o estado estático é pior do que a morte, porque é a negação da vida. O
tempo, este grande protagonista da existência, pode, por outro lado, ser
entrevisto de maneiras muito diversas. Pode ser concebido como uma espécie de
lugar onde se jogam os acontecimentos e onde se movem os seres. Este conceito é, em parte, sobreposto à noção de duração, uma
espécie de local vital. O tempo pode ser igualmente visto como um simples
coeficiente de transformação: as coisas modificam-se por causa do tempo e
necessitam do tempo para se transformar. Mas o tempo participa também
respectivamente dos conceitos de empobrecimento e enriquecimento que já temos considerado.
Enfim, o tempo participa igualmente da impressão da identidade individual posto
que cada um de nós possui, por sua própria identificação, esta-coordenação
temporal que a qualifica e a orienta.
A partir daí onde se encontra a verdadeira força do ser humano? Do
lado do impulso inicial que impõe a vida ou do lado do desenvolvimento e da
atualização desta mesma vida? A decadência que seria ligada ao envelhecimento
significaria então a decadência biológica ou a decadência do ser humano? O ser humano
agarra-se a elementos que ele considera rentáveis, ele espera a conservação
ininterrupta do elan inicial que ele crê frequentemente ter perdido. De outro
lado, ele sabe que tudo aquilo que é considerado como rentável pode ser
ilusório, o verdadeiro rendimento existencial pode encontrar-se, em compensação, em fatores julgados decadentes ou marginais. A satisfação
pode representar um elemento de parada, de bloqueio, quando a abertura e a
esperança são frequentemente ligadas a uma insatisfação relativa.
No fenômeno do envelhecimento percebe-se, além disso, a presença de
uma certa irracionalidade associando-se ao absurdo de um vivido que parece
progressivamente desprovido de seus utensílios mais válidos; esta
irracionalidade pode inserir-se muito mais do que a racional idade na fervura
desordenada que é um dos aspectos típicos da existência. Enfim, no
envelhecimento situa-se a surpresa permanente de "sobreviver",
surpresa relativamente fraca ou considerada como impossível no curso da juventude
onde, ao contrário, a vida é sentida como um direito, como um fenômeno lógico.
A estes fatores acrescenta-se a atitude descrita como sendo a sabedoria que
força o ser humano a dar-se um sentido. Com a velhice, a realidade sofre
inevitavelmente uma usura e um declínio funcional. Entretanto, sabemos que esta
realidade que nos aparece tão sensata e incontestável; está submetida a
interpretações subjetivas e a um relativismo constante. Por outro lado, o imaginário,
a vida intrapsíquica do indivíduo deveria sofrer, em teoria, justamente por
causa deste declínip da realidade, uma intensificação, uma espécie de superabundância
compensadora. Em vez disto, a imaginação parece limitar-se, empobrecer-se no
curso do envelhecimento. Não se sabe se isto é devido a uma falta de esforço
destinado a fazer frutificar sua própria vida imaginária ou se esta limitação
da imaginação é só uma impressão vista do exterior. A imaginação das pessoas
idosas, embora reduzida, poderia encerrar uma força compensadora e uma
intensidade emocional proporcionalmente mais elevadas em relação a estas
fantasias em aparências mais variadas e mais abundantes dos jovens.
Uma possibilidade diferente de interpretar a realidade e sua
confrontação com o imaginário pode aplicar-se com respeito à morte. Esta é
geralmente encarada como uma tragédia, como a destruição desta existência que,
de presente incompreensível, torna-se pouco a pouco para o homem seu próprio
ser. Estando habituado a viver, o ser humano está sempre mais preparado para confrontar
a existência: tomando consciência da presença da morte, depois de muito pouco
tempo de vida, ele deve preparar-se já para a perda desta e, por conseguinte,
para a morte. A morte, todavia, é um fenômeno que nos empurra para encontrar
uma significação para a vida. Mesmo se, caminhando na existência, nós nos
extraviamos e nos deixamos distrair por perspectivas menores julgadas práticas,
o aparecimento da morte, quando ela se desenha no horizonte, faz-nos voltar
para uma obrigação intrínseca, incita-nos a dar à nossa vida um valor mais
profundo e fundamental do que aqueles que nos animaram na existência cotidiana.
É na esteira desta ambivalência e desta ambigüidade que buscamos
descobrir e provar, através de múltiplos aspectos humanos, a antítese na qual
situa-se a diversidade entre o que poderia chamar-se o bom e o mau velho.
O velho é considerado bom, o que quer dizer aceitável, quando não
incomoda, quando é simpático e bem sucedido, quando ele manifesta algumas
características de sabedoria, mesmo se elas não sejam sempre levadas a sério.
O velho bom permite-nos tranquilizarmo-nos porque ele se nos apresenta
como uma pessoa que soube fazer frutificar a vida e tirar dela uma experiência
que nos é também reservada. Esta sabedoria é frequentemente um equivalente de
tranquilidade, de renúncia às paixões, uma espécie de anestesia e de
autolimitação.
Para ser bom, o velho não deve somente ser sábio, deve igualmente ser
sadio. Ele não deve nos preocupar com doenças, suas insuficiências brutais e
imprevisíveis para desenvolvimento.
Ele deve saber manter-se ágil e autônomo. Deve saber seduzir-nos com
sua capacidade de sobreviver e sua longevidade eventual. Tudo isto, com efeito,
nos fascina e nos faz esperar amanhãs interessantes.
Em compensação, o mau velho é, em geral, um velho doente, um velho que
nos culpabiliza, nos ameaça com uma assistência permanente ou com uma morte
próxima. Além do mais, é um velho, a bem do respeito, incompreensível, posto
que ele pode estar ferido pela tristeza, podendo, de repente, envolver-nos,
angustiar-nos sem cessar, inquietar-nos profundamente.
É um velho fraco, que tem necessidade de apoio, um velho frágil que,
já existindo um pouco no interior de nós mesmos, retirar-nos-á toda segurança
referente ao amanhã. Entretanto, este velho mau pode aparecer-nos também como
um velho diabólico, que não sabe desvencilhar-se das paixões, das mudanças, que
continua competitivo e que pode, no fim das contas, tornar-se perverso e assaz
egoísta; um velho insaciável sob todos os pontos de vista.
Por causa disto ele é um velho perigoso e insuportável, que não
realizou em momento algum o processo de purificação que a velhice tinha deixado
entrever para ele e que não parece ter renunciado a toda uma série de promessas
que a vida parece não ter inteiramente cuidado. Um velho que não sabe
suficientemente esquecer ou que não quer se lembrar o suficiente.
Tudo isto nos demonstra que uma parte do que se chama ou se descreve
como sendo a velhice precisa ser descoberta, ser aclarada com uma luz mais
apropriada e, de certa forma, ser inventada. Ela precisa igualmente ser
valorizada à maneira de uma terra até então abandonada e incerta, que poderia revelar-se
de uma plenitude insuspeitável. A velhice poderia mesmo assumir o papel da
idade mais importante da vida.
Para retomar nossa divisão (nossa antítese hipotética entre bons e
maus velhos) podemos perguntar-mo-nos se são, verdadeiramente os bons velhos,
tal qual os concebemos e os maus velhos, os mais estéreis, os adaptados demais,
os mais artificiais. E, no oposto, se não seriam os maus velhos os mais incompreendidos
? De fato, eles parecem os mais explosivos, os mais recalcitrantes em deixar-se
fechar num esquema idealizado e estereotipado, em uma casa de velhos, um gueto,
uma categoria bem estandardizada. Devemos nos perguntar desde então se devemos procurar
envelhecer segundo uma orientação pré estabelecida, seguindo um sulco
consagrado pela tradição ou deixarmo-nos envelhecer saboreando o envelhecimento
a cada instante, com seus sobressaltos, seus incômodos e suas espantosas
incoerências; um envelhecimento que advém, em parte, como queremos e porque o queremos,
um envelhecimento que se descreve bem mais através de nossa personalidade do
que pela contemplação de nossas lembranças e nossa capacidade de produção
passada.
Não somos somente o nosso passado, aquilo que fizemos ou fomos, somos
também, acima de tudo, nosso envelhecimento; para que ele seja nosso devemos
nos esforçar em não nos limitar em suportá-lo como um peso que nos amassa e nos
oprime. O velho verdadeiramente bom é provavelmente aquele mais bem sucedido em
criar, ele mesmo, seu próprio envelhecimento.
No fundo não existe velhice normal.
O envelhecimento é a "doença" do ser, mas no sentido de dever
colocar-se em causa, de sair das pretenções gratuitas, de uma progressão de
sentido único. O envelhecimento é a única maneira de existir completamente; a
única maneira, então, de ser "doente" de maneira séria e útil. Quanto
as outras doenças, aquelas que são acidentais, freqüentemente a velhice as
atenua, como as neuroses, as psicoses ou as lentifica, como o câncer.
Os velhos que não envelhecem, que permanecem iguais a eles mesmos,
parecem perder sua verdadeira identidade, sua verdadeira personalidade.
Os velhos que se assemelham demais parecem ter recusado o aspecto
marcante da individualidade que impregna normalmente o processo involutivo.
Estes são, em suma, os velhos que traíram seu envelhecimento.
O rosto, parte mais individualizada do ser humano, não envelhece
antes, digamos, do que o resto do corpo? De fato, não se pode negar que um
envelhecimento que soube conquistar seu próprio envelhecimento, que tem, por
assim dizer, escolhido, adquire sobre seu rosto uma forma particular de beleza
ou, se preferirmos, um certo desabrochar em relação ao qual a beleza da juventude
não é mais do que um esboço preparatório, um esboço ainda desprovido de
originalidade.
Referência
Abraham G., Andreoli A., Simeone I., Valente Torre L. Vecchi
buoni g vecchi cattivi. Introduzione ad una
gerontoloqia clínica.
Rome: CIC, 1981 (traduzido para o "francês por Armine Scheler).
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