Este caso do Rio de Janeiro nos reporta imediatamente ao famoso
caso Phineas Cage. O espantoso caso de Phineas Gage, foi tão importante na
história das ciências do cérebro, em particular da neuropsicologia, que mereceu
atenção especial em todas as obras sobre neuropsicologia.
Gage trabalhava para a Estrada de Ferro Rutland &
Burlington, onde era gerente na construção de um trecho da estrada, próximo à
cidade de Cavendish, no estado de Vermont, Estados Unidos da América, não muito
distante de Boston (Figuras 1 e 2). Tinha sob seu comando um grande número de
trabalhadores, cujas funções eram o assentamento de trilhos da ferrovia. Era um
trabalho muito difícil dada a constituição do terreno acidentado e rochoso.
Para tornar o trajeto da ferrovia mais curto, eles tinham de construir um
caminho mais reto por entre as rochas e, para tal, tinham de dinamitá-las e, em
seguida, desobstruir o terreno para a instalação dos trilhos. Gage coordenava
todas essas tarefas e era um gerente competente e dinâmico. Tinha um porte
atlético, tinha boa resistência física, era inteligente, leal, trabalhador,
extremamente responsável, um funcionário exemplar em todos os sentidos.
Figura 1
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Figura 1. – Cavendish (Vermont),
no círculo vermelho ao centro. Distante de Boston, Massachussetts,
aproximadamente 22,5 quilômetros
a noroeste e a 161 quilômetros de Albany,
NY, a nordeste.
Figura 2. – Cavendish e suas cercanias, margeando o Rio Negro e comunicando-se com as cidades próximas por estradas de rodagem e ferrovia (em negro).
Gage era considerado pelos seus chefes como o homem mais
eficiente e capaz a seu serviço. O trabalho requeria muita atenção e
concentração, notadamente quando era chegado o momento de preparar as
detonações de explosivos na rocha. O primeiro passo era fazer um buraco na
rocha. O segundo era encher o buraco até a metade com pólvora, colocar o
rastilho. Em terceiro, a pólvora era coberta com areia e, em seguida, era
socada com uma barra de ferro numa sequência de pancadas. Por último, o
rastilho tinha de ser acendido a uma distância segura para os trabalhadores.
Geralmente, a explosão ocorria para dentro da rocha e, para que isso ocorresse
a contento, a areia precisava ser bem socada. Caso isso não ocorresse, não
haveria proteção para os trabalhadores, durante a explosão, que se projetaria
para fora da rocha. A forma do ferro e o seu manuseio também eram importantes,
a tal ponto que Gage mandara fazer uma barra somente para si, a qual manipulava
com destreza. Sua barra tinha um comprimento de mais de um metro e um diâmetro
de 2,5 centímetros. Uma das pontas era afinada para facilitar o trabalho de
furar o buraco. Ao cair da tarde do dia
13 de setembro de 1848, ao executar essas tarefas pela enésima vez, Gage se
distraiu com o chamamento de um homem que estava atrás de si. A areia ainda não
tinha sido colocada no buraco. Distraído, Gage começa a socar o buraco
diretamente na pólvora enquanto olhava para trás. Logo surge uma faisca na
rocha e acontece uma explosão violenta, com um estrondo que a todos atordoa.
Após alguns segundos de confusão geral e, ao desvanecer a fumaça, todos vêm
horrorizados que Gage tinha sido trespassado na cabeça pela barra de ferro. A
barra tinha penetrado seu rosto pelo lado esquerdo, na altura da bochecha, e
saído pelo alto do crânio, alguns centímetros atrás de sua testa, um pouco à
direita. Mas estava consciente, porém atordoado e silencioso. Imediatamente foi
socorrido pelos seus companheiros e colocado num carro de bois e, sentado, foi
transportado para uma estalagem próxima, a cerca de um quilômetro. Gage saiu
sozinho do carro e andou com uma pequena ajuda de seus subordinados.
Imediatamente foi chamado o médico da cidade de Cavendish, Dr. John Martin
Harlow. A esta altura, Gage já era capaz de falar algumas frases, mantendo sua
lucidez. Logo, ele foi atendido por um colega mais novo de Harlow, o Dr. Edward
Williams. Aqui está o relato que Williams fez, assim que chegou e viu Gage pela
primeira vez:
Nessa altura, ele
estava sentado numa cadeira na piazza (varanda) da estalagem do Sr. Adams, em
Cavendish. Quando parei a carruagem, ele disse: ‘Doutor, tem aqui um trabaho
que lhe vai dar o que fazer’. Reparei logo na ferida existente na cabeça, antes
mesmo de descer da minha carruagem, sendo as pulsações do cérebro claramente
visíveis; a ferida tinha também um aspecto que, antes de eu ter examinado a
cabeça, não consegui compreender de imediato: o topo da cabeça assemelhava-se,
em certa medida, a um funil invertido; tal circunstância devia-se, descobri em
seguida, ao fato de o osso estar fraturado em redor do orifício numa distância
de cerca de cinco centímetros em todas as direções. Devia ter mencionado
anteriormente que o orifício através do crânio e dos integumentos não andava
longe dos quatro centímetros de diâmetro; as arestas desse orifício estavam
reviradas e a totalidade da ferida apresentava-se como se um corpo cuneiforme
tivesse passado de baixo para cima. O Sr. Gage, durante o tempo em que estive a
examinar o ferimento, ia descrevendo aos circunstantes o modo como tinha sido
ferido; falava de uma forma tão racional e mostrava-se tão disposto a responder
às perguntas que lhe faziam, que lhe coloquei diretamente as minhas questões,
em vez de as dirigir aos homens que o acompanhavam na altura do acidente e que
agora nos rodeavam. O Sr. Gage relatou-me então algumas das circunstâncias, tal
como a partir daí sempre as descreveu; e posso afirmar com segurança que nem
nessa altura, nem em qualquer outra ocasião subseqüente, exceto numa, o deixei
de considerar perfeitamente racional. A única ocasião à qual me refiro ocorreu
cerca de quinze dias após o acidente, quando insistiu em me chamar John Kirwin;
ainda assim, respondia corretamente a todas as minhas perguntas.
Phineas Gage teve
uma recuperação absolutamente surpreendente pelo período em que ocorreu o
acidente, quando não existiam antibióticos e os procedimentos neurocirúrgicos
ainda eram muito primitivos. Segundo Henry J. Bigelow, professor de cirurgia em
Harvard e que teve contato com o paciente e escreveu alguns trabalhos sobre
ele, relatou que a barra de ferro que atravessou o crânio de Gage pesava 6
quilos, media um metro de comprimento e tinha aproximadamente três centímetros
de diâmetro. A extremidade que penetrou o crânio foi moldada em forma de um
cone de 21 centímetros de comprimento e a ponta tinha meio centímetro de diâmetro.
Como esta barra de ferro foi encomendada a um ferreiro pelo próprio Gage, esse
detalhe é que, para Bigelow, teria salvo a sua vida. Posteriormente, naquele
mesmo dia, Gage foi atendido por John Harlow, que seria daí para a frente o seu
médico. Harlow previu que haveria infecção e cuidou cuidadosamente para que a
mesma não se generalizasse, utilizando curativos e limpeza diários com o
emprego de produtos químicos, que indicustivelmente contribuíram para que a
infecção ficasse circunscrita ao local. Relatou que houve febre alta e um
abcesso que foi drenado com bisturi. A boa saúde física e a juventude de Gage
contribuíram para sua rápida recuperação que ocorreu em dois meses. Ao fim
deste tempo ele foi liberado do tratamento e voltou para suas atividades, tendo
reassumido suas funções de gerente na obra da ferrovia. Mas, era outro homem.
Harlow havia
assistido em 1842 a palestras sobre frenologia de Nelson Sizer, discípulo de
Spurzheim. Esse conhecimento provavelmente fez com que se interessasse pelo
caso de forma incomum para os médicos da Nova Inglaterra da época. Ele relatou,
vinte anos após o acidente, que havia ficado intrigado com a recuperação de
Gage, praticamente sem seqüelas físicas e neurológicas, como distúrbios de
marcha, memória, linguagem, cálculo, orientação, etc. Havia perdido a visão do
olho esquerdo, mas a do olho direito estava perfeita. O fato mais marcante
percebido por Harlow foi uma perda do equilíbrio entre suas faculdades
intelectuais e suas propensões animais. Harlow ressalta as mudanças na
personalidade de Gage, que nada tinham a ver com o homem que fora anteriomente:
tornara-se caprichoso, irreverente, falando palavrões e obscenidades,
desrespeitoso para com seus colegas, intolerante e impaciente, não aceitava
divergências, às vezes determinado e perseverante, outras vezes vacilante,
fazia muitos planos para o futuro, mas não os colocava em prática. Nas palavras
de Harlow: “Sendo uma criança nas suas manifestações e capacidades intelectuais,
possui as paixões animais de um homem maduro”.
Numa
carta, datada de 27 de novembro de 1848, John Harlow envia para o editor do Boston Medical and Surgical Journal um
relato detalhado de suas observações sobre o caso Phineas Gage, carta que foi
publicada logo em seguida. Em 1999, o Journal
of Neuropsychiatry and Neurosciences, republicou a carta de Harlow, no que é
considerado o mais famoso relato de caso da história das ciências do cérebro.
Em seu relato, ele
descreve minuciosamente o quadro de saúde de Gage, das horas e dias que se
seguiram ao acidente, como a infecção foi debelada, como o abcesso foi rompido,
a recuperação surpreendente do paciente e sua posterior liberação para o
retorno às suas funções habituais. Podemos hoje encontrar na Internet inúmeros
sites dedicados a relatar, com profusão de fotos, mapas e relatos, a tragédia
de Gage, como o site da Universidade Deakin, na Austrália, organizado por
Malcolm Macmillan, da Faculdade de Psicologia, em Victoria, Austrália (site
disponível em:
O
site de Frederick Barker II, da Universidade Harvard é:
Um segundo
relato foi publicado em 1850 por Henry J. Bigelow, professor de cirurgia na
Universidade de Harvard. Bigelow enfatizou a falta de sintomas de Gage e disse
que ele “estava praticamente recuperado em suas faculdades do corpo e da
mente”. Devido à influência de Bigelow e sua descrença com o relatório de
Harlow de 1848, o caso foi esquecido durante vinte anos (ver em: DAMÁSIO, A. (1996). O
Erro de Descartes. Emoção, Razão e o Cérebro Humano. São Paulo. Companhia
das Letras).
A mudança na personalidade de Gage
fora radical. Harlow, em 1868, publicou desta vez um trabalho mais extenso e
completo sobre o caso no Bulletin
of the Massachusetts Medical Society, “antes, era um homem de
hábitos moderados e de considerável energia de caráter... tinha uma mente
bastante equilibrada e era considerado, por aqueles que o conheciam, um homem
de negócios astuto e inteligente, muito enérgico e persistente na execução de
todos os seus planos de ação... Seus amigos observavam entristecidos que Gage
já não era Gage” (Damásio, 1996). A consequência natural desta mudança é que
Gage foi demitido de seu trabalho, já que seus superiores consideravam a
mudança de sua personalidade tão importante que já não podiam permitir que ele
continuasse com as mesmas funções.
Gage aceitou
trabalhos, na região, em fazendas dedicadas à criação de cavalos. Como não
tivesse persistência em suas atividades ou disciplina, logo foi dispensado de
inúmeros empregos e assim foi mudando de empregos e passando a exercer
atividades as mais diversas. Harlow comentou que Gage sempre arrumava algum
trabalho para o qual não estava talhado. Logo, se interessou por apresentações
de circos, muito comuns no Século XIX, junto com figuras bizarras. Exibiu-se no
Museu de Barnum em Nova York (posteriormente esta empresa incorporou-se ao
lendário Circo Barnum & Bailey que, até o Século XX, encantou multidões na
América do Norte). Neste período, os grandes circos viviam de mostrar as
desgraças humanas como se fossem objetos de exposição em museus: anões, a
mulher mais gorda do mundo, o homem mais alto, o homem de maior queixo, o homem
com cara de lobo (distrofias endócrinas), pessoas com pele de elefante ou
portadoras de neurofibromatose. António Damásio compara esta situação como um espetáculo
digno de um filme de Federico Fellini. Não satisfeito, inquieto e sem
persistência como lhe ocorreria pelo resto de sua vida, Gage foi tentar a sorte
viajando para a América do Sul onde, no Chile, trabalhou como cuteleiro e
cocheiro em Santiago e Valparaiso.
Em 1859 sua saúde
deteriorou-se e, em 1860, voltou aos Estados Unidos, tendo se mudado para São
Francisco, onde foi morar com a sua mãe e irmã, casada com um comerciante bem
sucedido na região. Trabalhou em fazendas e foi operário na baía sem sucesso e
alternava períodos de trabalho com bebedeiras, brigas e confusões em áreas do
meretrício. Logo, passou a apresentar convulsões epilépticas e, numa delas, que
foi bastante prolongada, perdeu a consciência e entrou em quadro de “status
epilepticus”, vindo a falecer em 21 de maio de 1861, aos 38 anos de idade. Não
houve referência á sua morte nos jornais de São Francisco e foi enterrado em
cova comum no cemitério local.
Harlow, influenciado
pela frenologia e com aspirações acadêmicos (havia sido professor no Jefferson
Medical College na Filadélfia), se interessou muito pelo caso, mas não sendo
professor em nenhuma faculdade, não dispunha de laboratório de anatomia para
estudos mais aprofundados. Ele tomara conhecimento das novas descobertas feitas
por Broca, vindas da Europa. Mas Broca, além de neurologista era
neuropatologista e conseguia, através de necrópsias dos cadáveres de antigos
pacientes seus, como o caso de Mr.
Leborgne, estudar seus cérebros e fazer uma análise
comparativa com a sintomatologia clínica dos mesmos. Harlow havia perdido
contato com Gage e, provavelmente, o período político febril de antes da guerra
civil americana tenha contribuído para que as notícias não o houvessem
alcançado. Ele só soube da morte de Gage cinco anos após. É até possível que
tenha ficado abatido por não ter podido estudar aquele cérebro de uma pessoa
que marcou tanto sua carreira como médico e investigador leigo. Essa pode ter
sido a razão pela qual, após localizar os parentes de Gage, ter escrito à irmã
deste, em São Francisco, pedindo autorização para a exumação do corpo para que
o crânio pudesse ser recuperado e guardado para registro do caso em uma
instituição científica. Segundo Damásio (1996), a irmã, seu marido e o médico
da família (então presidente da câmara de São Francisco), assistiram à abertura
do caixão e à remoção do crânio por um coveiro.
O ferro que o havia
ferido havia sido colocado ao lado do corpo de Gage e foi igualmente recuperado
e enviado para Harlow em Massachussetts, em 1867. O acesso de brilho científico
e gesto extraordinário de preservação, trouxeram a Harlow, um médico modesto,
mas com uma grande devoção pela ciência, um destaque que o colocou nos anais da
história da medicina e o reconhecimento dos atuais cientistas do cérebro. A
fama e a glória, somente lhe advieram no Século XX, muito após sua morte em
1907, quando o caso Gage voltou a despertar o interesse do mundo científico.
Hoje, tanto o crânio como a barra de ferro estão juntos em Boston, expostos no
Warren Anatomical Museum da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard
(Figuras 3 e 4).
Figura
3 – Máscara mortuária e crânio de Phineas Gage. (Fonte: Warren Anatomical Museum, Francis A. Countway
Library of Medicine, Harvard).
O caso de Phineas Gage é paradigmático em vários sentidos, num deles é que contribuiu para o ressurgimento dos estudos da frenologia, naquela época já bastante desacreditados, dando origem a novos estudos de localização cerebral de funções. Esse caso despertou também a atenção de cientistas que já estavam a utilizar os modernos estudos de neuroimagens funcionais, peça de resistência dos atuais estudos das ciências do cérebro. Entre 1848 e 1868, o caso de Cage não foi levado muito a sério pelos médicos norte-americanos, pois se acreditava então que ele estava completamente recuperado. Em trabalho muito interessante sobre essa questão, publicado pelo neurocirurgião norte-americano, Fred Barker II, em 1995, havia dois pontos de vista contraditórios acerca do caso Gage. Uma, do Dr. John Harlow, o médico que atendeu Gage, e a outra de Henry Bigelow, da Universidade Harvard. Harlow havia prometido, após sua carta ao Boston Medical and Surgical Journal, escrever outro trabalho, desta vez com mais detalhamento das transformações observadas na personalidade de Gage. Bigelow usou seu ponto de vista para atacar a frenologia e tentar desacreditá-la ainda mais. Sua teoria acabou por prevalecer durante vinte anos, pois ele era o principal estudioso a afirmar que Gage teria voltado às suas condições físicas e mentais normais. Ele havia aprendido que lesões nos hemisférios cerebrais não traziam nenhuma conseqüência intelectual e não considerava significativas as mudanças comportamentais de Gage. Embora o paradigma de Bigelow fosse inicialmente mais influente, as teorias de Harlow, mais próximas à realidade do que estava acontecendo, se sobressaíram após vinte anos, reforçando os seguidores das teorias da localização cerebral. Sua versão do caso foi usada pelo grande fisiologista britânico David Ferrier como peça chave da moderna teoria da função do lobo frontal, sendo assim que o caso é hoje lembrado, motivo pelo qual entrou de forma imortal para a história (Barker II, 1995).
Houve vários
estudos que tentaram reconstituir a rota de passagem da barra de ferro pelo
cérebro de Gage. Essas reconstituições têm importância capital na compreensão
das verdadeiras áreas lesadas e de quais consequências lhe trouxeram o que é
fundamental para se entender as diversas áreas do lobo frontal com suas
respectivas funções específicas. Numa notável relação dos mais importantes
experimentos descritos na literatura e levantados por Macmillan (2009) podemos
citar os seguintes:
1- Harlow
e Williams, os dois médicos a ver Gage no dia do acidente, nada relataram de
específico sobre a entrada da barra sob o arco zigomático ou do dano da base,
mas Harlow foi incisivo ao descrever que o buraco de saída do ferro se deu na
junção das suturas coronal e sagital, e na linha mediana. Phelps, que examinou
Gage seis semanas depois, calculou que o ponto era algo em torno de 1,27
centímetros em frente à junção e de 2,54 centímetros à esquerda da linha média
(Macmillan, 2009).
2- Bigelow
aparentemente não chegou a nenhuma conclusão após seu exame de Gage em 1849, um
ano após o acidente, mas quando fez buracos em um crânio de demonstração, para
mostrar que a passagem era possível, ele pode ter arbitrariamente colocado o
centro do buraco na base a 2,54 centímetros de sua linha média, e o da saída na
frente da junção e à direita da linha média. As diferenças não foram resolvidas
quando o crânio de Gage foi trazido para Massachussetts em 1868.
3- Harlow,
em seu segundo trabalho de 1868, calculou a entrada do ferimento na base do
crânio a 3,175 centímetros da linha média. Ele estava agora um tanto em dúvida
sobre a trajetória por onde a barra saiu, dizendo somente que foi na frente da
junção dos ossos frontais e na linha média.
4- Eugene
Dupuy usou as descrições de Jackson de 1870, e possivelmente as fotografias do
catálogo do Warren Museum, para concluir que a barra emergiu frontalmente e à
esquerda da linha média. Mais tarde, após ver o crânio diretamente, ele parecia
manter a opinião de que o ponto do lado esquerdo era a área de saída, mas agora
com uma pequena mudança para o lado da junção dos ossos frontais.
5- David
Ferrier, ao replicar a crítica de Dupuy sobre seu trabalho de localização,
primeiro considerou o ponto de vista de Bigelow sobre o ponto de entrada na
base do crânio como sendo muito distante, à esquerda da linha média, e o ponto
de saída muito frontal anterior e muito mais à direita. Em uma importante
discussão posterior ele omitiu a menção a um ponto de saída; era quase como se
estivesse tentando determinar uma saída a seu modo (Macmillan, 2009).
6- Cobb
preparou um esboço em 1940 na base de um exame virtual do crânio. Ele sugeriu
que o ferimento de saída se deu entre os ossos frontais e que alguma lesão do
lado direito tinha sido produzida.
7- Em
1982, Kenneth L. Tyler da Universidade do Colorado e do Centro das Ciências da
Saúde e seu pai H. Richard Tyler, da Faculdade de Medicina de Harvard, concluíram
um estudo com tomografia computadorizada, no qual somente uma trajetória
poderia ser determinada e na qual a barra teria emergido de um local
específico. Ele incluiu a área de destruição total, de forma que a pequena área
à direita da linha média demarcava o limite extremo da lesão.
8- Em
1994, Hanna Damásio, Albert Galaburda,
Thomas Grabowski e R. Frank usaram método baseado em um computador mais
complexo. Inicialmente, localizaram o ponto mais provável no topo do crânio e
identificaram outros possíveis pontos de saída em volta dele. Todos esses
pontos mediam a metade do diâmetro das margens do que eles chamaram a área de
lesão total do osso, mas no caso excluíram a dobra de trás. Então, projetaram
possíveis trajetórias destes pontos frontais do lado direito, através do centro
do buraco até a base onde se localiza a área de entrada sob o osso da face.
Cada trajetória possível era examinada, comparada e feita uma compatibilização
com as lesões anatômicas conhecidas, sendo que sete trajetórias foram
consideradas viáveis. Ao exame mais aprofundado, duas delas foram rejeitadas,
deixando cinco para serem analizadas e comparadas com a lesão cerebral. Uma
peculiaridade notável dos pontos de saída, gerada pelas cinco trajetórias
observadas por Hanna Damásio e seus colaboradores, é que todas elas caminham
para a direita da linha mediana e em direção à frente da junção dos ossos
frontais como se a barra de ferro emergisse sob a dobra frontal não danificada
(Macmillan, 2009) (Figura 8.5).
Figura 5 –
Reconstituição da trajetória da barra realizada por Hanna Damasio e
colaboradores em 1994.
9- O
último estudo importante feito recentemente no crânio de Gage, no qual se
utilizaram tecnologias ultra-modernas de computação gráfica em anatomia, foi o
trabalho de Ratiu e Talos (2004), quando foram feitas reconstruções
computadorizadas em três dimensões do crânio baseadas em finas lâminas de
imagem por tomografia computadorizada. Com a utilização de um algoritmo de
computador, um modelo tridimensional de cérebro normal foi gerado por RNM que
foi sobreposto ao modelo do crânio. Os achados radiológicos foram
correlacionados com os dados clínicos anotados por Harlow. Os autores
concluíram que desde que o tamanho da lesão no osso no local de entrada na base
do crânio era a metade do tamanho do diâmetro do projétil, e dados os padrões
das linhas de fratura, o processo zigomático da maxila esquerda foi fraturado
em continuidade com a órbita. Isto permitiu que o lado esquerdo da face girasse
lateralmente, permitindo assim a passagem do projétil. A lesão cerebral foi
necessariamente limitada ao lobo frontal esquerdo e poupou o seio sagital
superior, caso contrário, a sobrevivência de Gage não seria possível dada a
certamente fatal hemorragia maciça que teria ocorrido, assim como embolia por
ar, ou ambas. Como nada disto ocorreu, a vida de Gage foi poupada (Figura 8.6).
Figura
6 – Reconstituição do trajeto da barra realizado com tecnologia atual. (Fonte:
Ratiu & Talos, 2004).
Essas diferenças de interpretação sobre a
passagem da barra de ferro pelo crânio de Gage naturalmente levaram a
diferentes pontos de vista sobre quais partes do cérebro de Gage foram lesadas
(Macmillan, 2009). Colocado de forma simplificada, quanto mais para a esquerda
da linha média da base e quanto mais para a direita da linha média do topo,
mais o lobo frontal direito estaria envolvido. De forma semelhante, quanto mais
o ponto de saída for colocado em frente à junção coronal e sagital, maior será
o envolvimento frontal; se colocado para trás, a lesão frontal seria menor.
Figura 7 – À
esquerda a figura esquemática feita por Harlow, em 1868, mostrando um ângulo da
penetração da barra em Gage, com a saída na região da intersecção frontal mais
posterior. À direita o ângulo como proposto por Hanna Damásio e colaboradores,
em 1994, mostrando como uma pequena mudança na angulação da penetração da barra
pode afetar áreas diferentes do lobo frontal, desta vez com a saída em área
frontal mais anterior e atingindo o seio sagital. (Fonte: www.brown.edu/Research/Memlab/py47/
diagrams.html).
Macmillan (2009) faz uma síntese das
mais diferentes opiniões acerca das lesões no crânio de Gage. Vamos ver cada
uma e as dificuldades que foram surgindo no decorrer dos anos com tais
discrepâncias: Harlow definiu que somente o hemisfério esquerdo tinha sido atingido
e que o direito estava intacto. Bigelow foi igualmente claro de que houve
somente lesão do lado direito. Dupuy aceitou que a trajetória foi direcionada
para a esquerda, mas colocou-a em direção menos frontal anterior, sugerindo que
a área motora posterior e áreas da linguagem tinham sido destruídas. Mas Gage
não teve comprometimentos motores ou afasia e isso foi uma evidência contra os
argumentos anti-localizacionistas de Dupuy. Ao rebater, Ferrier mostrou
conclusivamente, com justiça, que a passagem não foi tão posterior e que ambas
as áreas foram preservadas. Também concluiu que a única lesão foi do hemisfério
esquerdo, conclusão esta que não foi contestada por mais de 70 anos. O diagrama
de Cobb, o primeiro das modernas “reconstruções”, revelou dano semelhante ao
proposto por Bigelow: ambos os hemisférios estavam envolvidos com maior lesão
no esquerdo do que no direito. Esta conclusão, embora menos detalhada, é
amplamente congruente com os Tylers, pai e filho. Quando Hanna Damásio e seus
colaboradores simularam a passagem da barra de ferro, através de cinco
trajetórias selecionadas através de um modelo tridimensional do cérebro de
Gage, eles observaram serem as lesões até mais frontais e mais à direita. Por
fim, Ratiu e seus colaboradores concluíram que a lesão foi limitada ao lobo
frontal esquerdo, não se estendendo ao lado direito, e não afetou o sistema
ventricular com seus vasos sanguíneos vitais dentro do crânio, conclusão esta
que parece ser a mais provável correta reconstrução da lesão.
Nota: para saber mais, consulte o capítulo 8 de: CORRÊA, Antônio Carlos de Oliveira. Memória, aprendizagem e esquecimento. A memória através das neurociências. Rio de Janeiro. Atheneu, 2010.
Parabéns pelo post. Sou estudante de psicologia e me interesso por neuropsicologia e neurociência se o senhor tiver indicação de livros, textos, blogs, artigos e etc ficaria grata.
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