As musas. Mitologia grega. |
Conheço algumas pessoas que estão
envelhecendo mal. Desconfortavelmente.
Com uma infelicidade crua na alma. Estão
ficando velhas, mas não estão ficando sábias. Um rancor cobre-lhes a pele, a
escrita e o gesto. São críticos azedos do mundo. Em vez de críticas, aliás,
estão ficando cítricas sem nenhuma doçura nas palavras. Estão amargos.
Com fel nos olhos.
E alguns desses, no entanto, teriam tudo
para ser o contrário: aparentemente tiveram sucesso em suas atividades. Maior
até do que mereciam. Portanto, a gente pensa: o que querem? Porque essa bílis
ao telefone e nos bares? Por que esse resmungo pelos cantos e esse sarcasmo público
que se pensa humor? Isto está errado. Errado, não porque esteja simplesmente
errado, mas porque tais pessoas vivem numa infelicidade abstrusa. E ademais,
deveria-se envelhecer maciamente. Nunca aos solavancos. Nunca aos trancos e
barrancos. Nunca como alguém caindo num abismo e se agarrando nos galhos e
pedras, olhando em pânico para o buraco enquanto despenca. Jamais, também, como
quem está se afogando, se asfixiando ou morrendo numa câmara de gás.
Envelhecer deveria ser como plainar. Como quem
não sofre mais (tanto) com os inevitáveis atritos. Assim como a nave que sai do
desgaste da atmosfera e vai entrando noutro astral, e vai silente, e vai
gastando nenhum quase combustível, flutuando como uma caravela no mar ou uma
cápsula no cosmos.
Elefantes, por exemplo, envelhecem bem. E
olha que é uma tarefa enorme. Não se queixam do peso dos anos, nem da ruga do
tempo, e, quando percebem a hora da morte, caminham pausadamente para um certo
lugar - o cemitério dos elefantes, e ai morrem, completamente, com a grandeza
existencial só aos grandes permitida.
Os vinhos envelhecem melhor ainda. Ficam ali
nos limites de sua garrafa, na espessura de seu sabor, na adega do prazer. E
vão envelhecendo e ganhando vida, envelhecendo e sendo amados, e, porque
velhos, desejados. Os vinhos envelhecem densamente. E dão prazer.
O problema da velhice também se dá com
certos instrumentos. Não me refiro aos que enferrujam pelos cantos, mas a um
envelhecimento atuante como o da faca. Nela o corte diário dos dias a vai
consumindo. E, no entanto, ela continua afiadíssima, encaixando-se nas mãos da
cozinheira como nenhuma faca nova. Vai ver, a natureza deveria ter feito os
homens envelhecerem de modo diferente. Como as facas, digamos, por desgaste,
sim, mas nunca desgastante. Seria a suave solução: a gente devia ir se
gastando, se gastando, se gastando até desaparecer sem dor, como quem
caminhando contra o vento, de repente, se evaporasse. E aí iam perguntar: cadê
fulano? E alguém diria: gastou-se, foi vivendo, vivendo e acabou. Acabou, é
c!aro, sem nenhum gemido ou resmungo.
Isto seria muito diferente de ir
envelhecendo por um processo de humilhações sucessivas, como essa coisa de ir
deixando rins, pulmão, dentes e intestinos pelas mesas de cirurgia, numa
mutiladora dispersão.
Acho que o que atrapalha alguns maus
envelhecedores é a desmesurada projeção que fizeram de si mesmos. Se
dimensionaram equivocadamente.
Deveria ser proibido, por algum mecanismo
biológico, colocarmos acima de nossas forças. Seria a única solução para-acabar
de vez com a fábula da raposa e as uvas. Assim, a raposa não envelheceria
resmungando por não ter devorado o que não lhe pertencia. Deveria, portanto,
haver um relais, que desligasse nossos impulsos toda a vez que
quiséssemos saltar obstáculos para os quais não temos músculos. Assim,
sofreríamos menos e não amargaríamos não ter tido certas mulheres, conquistado
certos reinos, escrito certas obras-primas.
A literatura tem lá seus personagens símbolos
a esse respeito: o Fausto e o Dorian Gray. Apavorados com a velhice de volta,
fizeram um pacto com o diabo. Não deu certo. O diabo não joga para perder. Dizem
que a única vez que foi realmente derrotado foi naquela disputa com o próprio
Deus a respeito de Jó. Mesmo assim, deu um trabalho danado.
Especialistas vão dizer que envelhece mal o
indivíduo que não realizou suas pulsões eróticas essenciais; aquele que deixou coagulada
ou oculta uma grande parte de seus desejos. Isso é verdade. Parcial, porém. Pois
não se sabe por que estranhos caminhos de sublimação, há pessoas que, embora
roxas de levar tanta pancada na vida, têm, contudo, um arco-íris na alma.
Bilac dizia que a gente deveria aprender a envelhecer
como as velhas árvores. Walt Whitman em um poema onde vai dizendo: "Penso que
podia ir viver com os animais que são tão plácidos e bastam-se a si mesmos.”
Ainda agora tirei os olhos do papel e olhei
a natureza em torno. Nunca vi o Sol se queixar no entardecer. Nem a Lua chorar
quando amanhece.
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