Em
1990, o Brasil passava por um dos períodos mais turbulentos de sua história
contemporânea. Fernando Collor de Mello havia sido empossado como Presidente da
República e tomava uma série de medidas intempestivas e desastrosas, para a
economia do País e para a sociedade, em nome da Modernidade e da Juventude.
Contrastando com a política de Tancredo Neves, um político velho, um
conciliador por excelência, um homem pleno de sabedoria, que sabia ouvir seus
correligionários e opositores, um homem do diálogo e da paz, Collor era um
verdadeiro trator, um ególatra prepotente, imprudente e desatinado. E tudo que
fazia era para destruir o que os “velhos” haviam feito anteriormente na
Presidência. E deu no que deu. Neste ano de 1990, mal passado seu primeiro
trimestre, o prof. Rogério Cézar de Cerqueira Leite, um dos mais brilhantes
cientistas do País, escreveu no jornal diário “A Folha de São Paulo” este
belíssimo texto, como a dar um recado ao nosso então desembestado presidente.
Reproduzo aqui esta joia, cuidadosamente guardada em meus arquivos.
O
Príncipe, a Modernidade e a Juventude
Rogério Cézar de Cerqueira
Leite
Extraído de “A
Folha de São Paulo” (15/04/1990).
Possivelmente
em busca da modernidade, parte o Pequeno Príncipe em peregrinação
interplanetária. Ao monarca daquele primeiro asteroide em que parou um pouco
para descansar, ele pede, em regime de urgência, um pôr-do-sol. “Cada coisa a
seu tempo”, explica o anfitrião. “Ora Majestade”, retruca o príncipe, “o senhor
é ou não é o líder? Que espécie de monarca é o senhor que não pode encomendar
um pôr-do-sol que qualquer plebeu tem tantas vezes quanto quiser?” Ah, se eu
ordenasse ao meu general que se transformasse em borboleta, seríamos ele e eu
desmoralizados”, respondeu-lhe o sábio ancião e continua, “eis porque só dou
ordens razoáveis. Assim, à hora apropriada, determinarei a realização de um pôr-do-sol”.
E,
com essa decepção, retoma o Pequeno Príncipe a busca da deusa Modernidade. “Não
se pode confiar nos velhos”, conclui ele, “temos que entregar o poder aos
jovens. Somente os jovens inovam. Quando eu for rei, minha corte será composta
de jovens. Fora com os velhos. Viva a Modernidade”.
E
de fato a biologia suporta este preceito. Chama-se “neotenia” a propriedade de
que se valem algumas espécies privilegiadas para estender no tempo a sua
infância e, portanto, a sua habilidade para aprender e para mudar. É por isso
que o homem, sob este particular aspecto a mais privilegiada das espécies,
estende a sua pródiga imaturidade por cerca de um terço de sua vida média. E já
houve época em que a maturidade só era alcançada após a metade da média de vida
do cidadão. Mas talvez justamente devido a este privilégio deva a questão da relação
entre mudança e idade ser analisada com um pouco mais de vagar.
Comecemos
pelo outro “Príncipe”, o de Maquiavel. Escrito de um só lance – o autor tinha
44 anos, um ancião para a época em que já teria ultrapassado a média de vida de
seus concidadãos - , não é, apesar da perene eloquência, uma obra
revolucionária tanto quanto a ousada “História de Florença”, do mesmo
Maquiavel, terminada às vésperas de sua morte em 1526, quando já alcançava a
idade provecta de 57 anos.
Com
20 anos Goethe escreveu o seu piegas Werther e com quase 60 o imaginativo
primeiro Fausto. Mas foi com 83 anos que sua criatividade alcançou o pináculo
na rebuscada alegoria do segundo Fausto. E por falar em Fausto, a obra-prima de
Thomas Mann, “Doktor Faustus” foi escrita em 1947, quando o autor já tinha 72
anos e é certamente muito mais inventiva que “Os Buddenbrook”, obra de seus 26
anos, ou mesmo que “A Montanha Mágica”, produto de seus 51 anos.
E
Swift tinha 59 anos de idade quando terminou sua obra-prima de metáfora e
imaginação “As Viagens de Gulliver”. O “Espírito das Leis” foi formalmente
iniciado por Montesquieu apenas em 1743 quando ele já tinha 54 anos e terminado
em 78. Rousseau tinha 50 anos quando publicou tanto o “Contrato Social” quanto “Émile”.
A “Riqueza
das Nações”, de Adam Smith, essa genial obra-prima de ficção econômica, foi
publicada em 1776 quando o autor tinha 53 anos. E suas ideias, apesar de seu
débito a Hume, foram tão revolucionárias para época quanto a teoria da
relatividade geral ou a mecânica quântica deste século XX, embora pouco realistas.
Freud escreveu seus mais ousados trabalhos, com a única exceção talvez de “A
Interpretação dos Sonhos”, de 1900, após 1915, quando já estava com 59 anos de
idade. William James também produziu seus mais inovadores ensaios após seus 50
anos. E a obra-prima e derradeira de Dostoiévski, “Os Irmãos Karamasov” não
pode ser terminada devido à morte de seu autor aos 61 anos de idade.
Foi
às vésperas dos seus 40 anos que Shakespeare escreveu algumas de suas mais
bem-sucedidas peças, como Hamlet e Otelo. Mais tarde viria o pináculo de seu
teatro com o Rei Lear, Macbeth e Antônio e Cleópatra. Mas é no final de sua
atribulada vida que são criadas as mais revolucionárias de suas obras, tais
como “O Conto de Inverno”, “A Tempestade” e “Cymbeline”. E tinha Cervantes
quase 60 anos quando terminou a primeira parte de Dom Quixote. As novelas
exemplares viriam depois. Embora não seja impossível que Dante tenha começado a
escrever sua “Divina Comédia” anteriormente, é certo que a maior parte da
obra-prima tenha sido escrita entre 1315, quando já completara o poeta os 50
anos de idade, e sua morte em 1321.
Embora
profundamente marcado pelas suas experiências durante a Viagem do Beagle,
quando já alcançara os 62 anos, Darwin só demonstrou sua ousadia intelectual em
1859 com a publicação da “Origem das Espécies” e finalmente com a
revolucionária “Descent of Man”, de 1871.
Aos
30, Beethoven imitava os clássicos Mozart e Haydn enquanto suas obras
revolucionárias, as últimas cinco sonatas, os últimos cinco quartetos, a Missa
Solene e a Sinfonia Coral se concentram em seus dez últimos anos de vida. Foi
também com mais de 50 anos que Bach compôs suas mais imaginativas obras, a
Missa em Si Menor, a Oferenda Musical, A Arte da Fuga, as Variações Goldberg, a
segunda parte de O Cravo Bem Temperado, As Variações Canônicas e os Corais
Schubler.
São
os últimos livros de Madrigais de Monteverdi, principalmente o sétimo, de 1619,
e o oitavo, de 1638, quando estava o autor com 52 anos e 71 anos,
respectivamente, os mais exuberantes e inovadores. Aliás, são de 1641 e 1642 as
suas duas últimas gloriosas óperas, escritas quando o vigoroso mestre estava
beirando 75 anos. Também Verdi escreveu sua obra-prima, o Otelo, aos 76 e sua
mais inovadora obra, Falstaff, aos 80. Entre os 30 e os 40 anos estava compondo
os popularescos e triviais Rigoletto e Traviata.
E
Papa Haydn, escreveu suas mais espetaculares obras depois dos 60, as Sete
Missas Tardias, seus oratórios “A Criação” e “As Estações”. E Haendel compôs
seus 15 grandes oratórios posteriores aos Messias, este incluído, depois que
havia completado os 57 anos de idade. E o que teriam os geniais Mozart e Schubert
criado se não tivessem morrido prematuramente aos 35 e 31, respectivamente,
jamais saberemos.
São
as últimas as pinturas mais inovadoras de Da Vinci, a insólita Monalisa (La
Gioconda) e a Batalha de Amghiari. Goya só concebeu seus “Desastres de Guerra”
após completar 50 anos e sua imaginação explodiu aos 70 anos em Bordeaux. Até
os 30, Picasso gerou as obras sonolentas dos seus períodos azul e rosa antes do
cubismo reacionário, pausa para tomar forças e partir para a permanente
ebulição posterior aos seus 40 anos, com “Guernica”, “Os Três Músicos”, “O
Guitarrista” e tantos outros.
É
verdade que esses exemplos contradizem a famosa estatística de Lehman, de 1953,
que possivelmente está na base do preconceito de que criatividade é privilégio
dos jovens.
E
nisso tudo pensava o Velho Rei ao acenar ao Príncipe que partia, segundo
algumas fontes da época, atrelado a um bando de cotovias em revoada
interestelar. Outros afirmam, entretanto, que ele foi mesmo em um Mirage e
usava uma fantasia de Rambo.
E
assim escolheu a sua corte. A Modernidade exige jovens. Nada de velhos, nada de
adultos no poder. E deu no que deu. O inconformismo é essencial, mas tem que
ser temperado com a experiência. Erik Erikson reconhece três fases no homem
maduro. Na primeira, o “jovem-adulto” é dominado por impulsos de intimidade e
isolamento. Seu problema é suplantar a crise da adolescência e confirmar sua
identidade. Ele está confuso e é pouco criativo. Na segunda fase o adulto
recompõe sua personalidade através da geração de meios de auto-controle. Ele é
responsável e conservador.
Somente
na terceira e última fase de sua vida atinge o homem sua plenitude ao sobrepor
sua integridade à angústia e ao desespero. É a idade da sabedoria. Sua
criatividade não deriva, como na adolescência, da ausência de inibições
decorrentes da inexperiência, mas pelo contrário, do acúmulo e da organização
do conhecimento. Uma nação que dispensa a sabedoria, mesmo que seja em nome da
Modernidade, não pode sobreviver.
À
época da publicação deste artigo, o prof. Rogério Cézar de Cerqueira Leite
tinha 58 anos. É físico e é um dos mais conceituados cientistas do Brasil,
especialista em energia. Foi professor da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) e foi membro do Conselho Editorial da Folha de São Paulo.
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