quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Jorge Paprocki (1925-2015)



Jorge Paprocki (1925-2015).
Foto: Antônio Costa Guimarães.

Jorge Paprocki foi um dos mais importantes personagens da história da psiquiatria mineira. Há mesmo quem separe a psiquiatria mineira em dois períodos: antes e depois de Paprocki. Exageros à parte, posso, seguramente, afirmar que Paprocki teve participação fundamental em nossa história psiquiátrica.

Nascido na Polônia e vindo criança para o Brasil, Jorge Paprocki se graduou em medicina pela Faculdade de Medicina da UFMG em 1955. Mudou-se para Juiz de Fora, onde iniciou sua prática psiquiátrica ao mesmo tempo em que se dedicava às pesquisas na área da psicofarmacologia e terapêuticas biológicas. Até o seu falecimento, em 17 de agosto de 2015, aos 90 anos, manteve-se lúcido e continuou sua prolífica carreira de grande clínico, psicoterapeuta, pesquisador e professor. Formou diversas gerações de psiquiatras que lhe serão eternamente agradecidos pela imensurável quantidade de conhecimentos transmitidos e pelo simpático apoio em suas carreiras. 


Paprocki no exercício da atividade que mais gostava como hobby: a pintura.
Foto: Antônio Costa Guimarães.


Tive o privilégio de estudar e trabalhar com Paprocki no Hospital Galba Velloso, de agosto de 1966 a janeiro de 1971, onde dei meus primeiros passos na especialidade da psiquiatria, e de quem recebi apoio fundamental nos estudos e nos trabalhos de edição de livro e revista e na produção de artigos científicos. A tristeza pela sua perda não pode ser descrita em palavras. Ficará para sempre um eterno sentimento de gratidão e o desejo sincero que descanse em paz!

Para pontuar esta carreira de sucesso como médico, clínico, professor e orientador, transcrevo abaixo parte do texto que escrevi há alguns meses, quando do renascimento da Revista do Centro de Estudos Galba Velloso, sobre a história da psiquiatria mineira, onde enfatizo o papel representado por Paprocki nesta história e que está também em outras postagens neste blog. Há quase cinquenta anos fui o fundador e primeiro editor de seus quatro primeiros números. Nesta bela cerimônia, em dezembro de 2014, eu estava presente, ao lado de Jorge Paprocki, José Raimundo da Silva Lippi e Francisco Paes Barreto, alguns dos sobreviventes daqueles tempos.


Composição da mesa na cerimônia de relançamento da 
Revista do Centro de Estudos Galba Velloso: da esquerda para a direita:
Francisco Paes Barreto, Antônio Carlos Corrêa e Jorge Paprocki.

Ao final da cerimônia de refundação da Revista do Centro 
de Estudos Galba Velloso, Antônio Carlos Corrêa e Jorge Paprocki,
em dezembro de 2014.

Nos últimos tempos trocávamos mensagens por email sobre variados temas. Minha última participação em um evento com Jorge Paprocki foi no dia 13 de junho de 2015, quando sete dos fundadores da Associação Mineira de Psiquiatria receberam o título honroso de Membro Honorário. 


Da esquerda para a direita: Fernando Grossi, Maurício Leão (presidente da AMP), José Raimundo Lippi, Eudes Garcia, Maurício Viotti Daker, Jorge Paprocki, Frederico Garcia, Antônio Carlos Corrêa, Francisco Paes Barreto, Newton Figueiredo, Jairo Furtado Toledo e a secretária da Associação Médica de Minas Gerais. XVII Congresso Mineiro de Psiquiatria,
13 de junho de 2015.

Da psicodinâmica às neurociências: meio século de psiquiatria em Minas Gerais:


Senti-me muito honrado com o convite para escrever um texto sobre os primórdios do Centro de Estudos Galba Velloso que completa agora meio século de existência. De repente, olho para trás e parece-me que aqueles tempos se passaram, na realidade, há um mês ou, no máximo, no ano passado. O tempo corre muito rápido e não nos apercebemos disso. Só de pensar que há mais de 30 anos a maioria da população brasileira não existia é eu me arrepio. Essa transitoriedade cria um compromisso para aqueles que, como eu, testemunharam esses tempos pioneiros e nos dá quase que uma obrigação de relatar o acontecido então.  Difícil missão, pois nossa memória nos trai mais do que nos é fiel. Outra dificuldade é que vemos o passado com o nosso olhar, que pode estar contaminado por nossos princípios, formação e ideologia. De qualquer forma, aceitei o convite quase que como um desafio. Reconstruir os fatos ocorridos não é fácil, que o digam os historiadores. Mas é um desafio que merece ser encarado, pois o passado não pode ser simplesmente esquecido ou negado, como se jamais existira. Posso, neste relato, estar equivocado, contaminado por lembranças pessoais em que a angústia de um tempo de inquietudes e incertezas, de expectativas quanto ao futuro profissional ainda incerto, distorce os fatos, interpreta erroneamente as falas e os escritos dos personagens, numa catatimia sem valor. Preferi correr o risco de errar do que de me omitir. Eu me permiti dar minha versão dos fatos, mesmo que ela não coincida com a de outros. Melhor errar do que nada fazer. Assim, perdoem-me aqueles que, certamente, não foram incluídos nesta história. Como já apontado, nossa memória nos prega peças, fazendo-nos cometer injustiças ao não incluir este ou aquele personagem, ou interpretando os fatos dessa ou daquela maneira catatímica, fazendo-nos desviar do que realmente ocorreu. Assumo este risco e, desde já, me penitencio. Mas, julgo que é um dever colocar no papel minha visão das coisas ocorridas e vividas. Assim, vamos lá!

Quando iniciei meus primeiros contatos com a psiquiatria corria o mês de agosto de 1966. Era eu, então, um jovem estudante na Faculdade de Medicina da UFMG. Havia recém concluído a disciplina de farmacologia, cujo professor titular (então era conhecido como professor catedrático) era o prof. Santiago Americano Freire, um cientista que, após sua aposentadoria, dedicou-se a trabalhar em áreas muito próximas à psiquiatria. Tanto é que desenvolveu uma técnica própria de enfoque à psicoterapia, chamada “neurosanálise”, publicada em livro em 1977. Logo após concluir a disciplina de farmacologia, fui submetido a avaliações, com entrevistas e testes, e fui admitido como interno acadêmico no Hospital Galba Velloso, então um foco polarizador de ideias que estavam renovando a psiquiatria mineira. Na ocasião, existia a figura do interno acadêmico, isto é, o estudante de medicina que, a partir do terceiro ano da faculdade, após concluir algumas disciplinas fundamentais, entre elas a farmacologia, podia ser admitido em hospitais, após avaliações ou concursos, com o fim de estagiar, trabalhar como plantonista, atender a enfermarias e ambulatório. Em troca, caso o desejasse, poderia ali residir, o que foi o meu caso.

A psiquiatria mineira passava por algumas transformações importantes. Em 1963, a direção do Hospital Galba Velloso fora transferida para as mãos do Dr. Jorge Paprocki, então um nome em ascensão em Minas Gerais em função de suas pesquisas e publicações em revistas científicas acerca do uso de anestésicos e narcose na eletroconvulsoterapia (ECT). Paprocki trabalhava ao lado do psiquiatra Ivan Ribeiro e do anestesiologista Petrônio Boechat. Paprocki também se tornava conhecido nacionalmente em função de suas pesquisas e publicações na área de psicofarmacologia, então um setor da psiquiatria em franco desenvolvimento. A partir de 1952, uma verdadeira revolução na psiquiatria ocorria desde a publicação, por dois psiquiatras franceses, Jean Delay e Pierre Deniker, da ação terapêutica nas psicoses esquizofrênicas e na psicose maníaco-depressiva (então o nome adotado para o atual Transtorno Bipolar do Humor) da clorpromazina, cujo nome comercial ainda hoje é Amplictil.

A administração de Jorge Paprocki foi uma grande e impactadora novidade na psiquiatria mineira e brasileira. Trouxe ideias novas, bafejadas pela onda internacional que adotava terapêuticas menos rígidas para os doentes mentais, tais como: reduzir ao mínimo as contenções físicas, priorizar a utilização de psicofármacos sobre outros métodos biológicos mais invasivos ou traumáticos do ponto de vista psicológico, priorizar as terapêuticas de ressocialização através de comunidades terapêuticas, ambientoterapia, socioterapia, suporte psicoterápico institucional, terapia ocupacional e outras. Os resultados logo começaram a surgir. Aliado a tudo isto, num gesto audacioso para aqueles tempos (e ainda para os dias atuais), Paprocki instituiu o chamado “open-door integral”, isto é, as enfermarias não eram trancadas com grossas portas com barras de ferro para evitar a fuga de pacientes. Em vez disto, não havia portas. Era colocada na entrada das enfermarias apenas uma das pacientes, já em boas condições psíquicas e próxima a receber alta hospitalar, sentada numa cadeira, a controlar a entrada e saída das demais pacientes. Não é de se espantar que o burburinho tenha logo corrido pelos meios clínicos, científicos, acadêmicos, profissionais e até leigos da Capital. Mas os resultados foram extremamente animadores, o que incentivou esta política de lidar com os pacientes psiquiátricos.

Outra política adotada por Jorge Paprocki foi a de abrir as portas do hospital para jovens estudantes de medicina que desejassem seguir a especialidade da psiquiatria, acolhendo-os como internos acadêmicos. Grande parte deles passou a residir no HGV, em um setor reservado para área residencial dos médicos e estudantes, que trabalhavam nos plantões, nas enfermarias e no serviço de internação hospitalar, ao mesmo tempo em que recebiam treinamento e supervisão dos psiquiatras mais experientes do hospital. A notícia desta novidade correu como um raio pela cidade e pelo estado e atraiu uma plêiade de jovens estudiosos e sequiosos de conhecimento e treinamento especializado. Isso foi o berço de uma grande geração de futuros psiquiatras que iriam se destacar, e continuam se destacando, nas mais diversas áreas da psiquiatria, da psicanálise, da psicoterapia, da neuropsiquiatria e das neurociências. Deste berçário surgiram grandes profissionais, grandes pensadores, grandes clínicos e pesquisadores e muitos continuam ainda atuando em todo o País. Infelizmente, muitos já se foram, deixando um rastro de saudades.

Jorge Paprocki, como diretor, era severo, respeitado e, de certa forma, temido, mas, ao mesmo tempo, era bondoso, compreensivo e incentivador das habilidades e qualidades individuais de cada um de seus orientandos. Ele tinha consciência disso e se esmerava em seu papel, no que, aliás, se revelou uma conduta por demais correta e que lhe rende reverências e homenagens até os dias atuais. 

Alguns profissionais experientes já haviam sido arrebanhados sabiamente por Jorge Paprocki. Entre eles podemos citar (não psiquiatras): Benítez Emílio Conde, experiente neurologista, Dalton Lintz de Freitas, também experiente neurologista e eletroencefalografista, Emílio Grimbaun, grande clínico e cardiologista, excepcional figura humana, um dos pioneiros da medicina psicossomática em Minas Gerais, extremamente culto e sempre prestativo a qualquer um que lhe buscasse os conselhos e orientação, Geraldo Ribeiro, conhecido como Geraldo Cegonha, ginecologista e obstetra de fama nacional, um dos pioneiros da fertilização in vitro no Brasil, Belces de Paula, também um excelente clínico geral, com especialização nos Estados Unidos, em endocrinologia, Edson Rasuk, grande cardiologista, José Luiz de Amorim Ratton, clínico, e muitos outros médicos, cuja memória me trai neste momento.

Dentre os psiquiatras mais experientes e grandes mestres da prática diária de um hospital posso citar: Helênio Coutinho Guimarães, Neusa Magalhães Carneiro, Pedro Lopes de Oliveira, José Pedro Salomão,   José James de Castro Barros, José Domingues de Oliveira, Aldorando Ricardo do Nascimento, Mário Catão Guimarães, José Raimundo Lippi e a onipresente Eunice Rangel, braço direito de Paprocki, que, com sua atenção durante as 24 horas do dia, tornou-se indispensável para o sucesso de todas as realizações e para com as necessidades e cuidados no hospital.

Quando cheguei ao HGV, como dito, pela primeira vez, como exigido pelo protocolo de avaliação de futuros internos acadêmicos, eu havia concluído a disciplina de farmacologia na Faculdade de Medicina da UFMG, onde eu iniciara meu curso médico em abril de 1964. Era agosto de 1966. Eu estava extremamente ansioso e na expectativa de conseguir uma vaga naquele templo de conhecimento e ensino psiquiátrico. Fui entrevistado por Eunice Rangel e me submeti aos testes de personalidade no mesmo dia. Éramos eu e um colega de turma, Ângelo Pezzuti, que mais tarde se destacaria na luta armada contra a ditadura militar do Brasil. Pouco depois, ele entraria para a clandestinidade e, tendo sido preso pelo governo militar, se exilaria na Europa, onde veio a ter um fim trágico.
          
Na ocasião, já havia um considerável número de internos acadêmicos que ali trabalhavam e estudavam há, pelo menos, dois ou três anos. Posso citar: Marco Aurélio Baggio, César Rodrigues Campos, Odília Miguel Pereira, Francisco Juarez Ramalho Pinto, Virgílio Bustamante Rennó, Francisco Paes Barreto, Francisco Xavier, Vicente Santos Dias, José de Assis Corrêa, Eudes Ramón Paredes Montilla (venezuelano), José Carlos Pires Amarante e Arlindo Carlos Pimenta. No mesmo período em que fui aprovado como novo interno acadêmico, outros dois colegas de minha turma de faculdade, Javert Rodrigues e Rodrigo Teixeira de Salles, também o foram. Constituíamos, assim, quatro colegas da mesma turma de faculdade a estagiar no Galba. Deles, o único que passou a residir no hospital fui eu. Um ano mais tarde, recebemos a companhia de mais três colegas de nossa turma da faculdade: Lélio Marcio Dias, Maria Muniz Passos (Lia) e Maria Auxiliadora Athayde (Dodora).

Outros estagiários, de turmas da faculdade anteriores à minha, logo se incorporaram a este multifacetado grupo de jovens idealistas e estudiosos, como José Ronaldo Procópio, Claudio Pérsio Carvalho Leite e Hélio Roscoe. Também havia se incorporado um grupo de psicólogos estagiários e estudantes de psicologia, inteligentes e dedicados, como: Welber Braga, Elizabeth Clark, João Mascarenhas, Flávio José de Lima Neves e outros. Formou-se também, aos poucos, um grande grupo de enfermeiras, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, todos a enriquecer o grupo com seu dedicado trabalho. Também havia uma equipe de professoras para o curso fundamental que ministravam aulas de cuidados pessoais, higiene, auxílio à leitura e escrita, para as pacientes internadas, como um complemento às diversas terapias disponíveis. Esta foi uma experiência única e pioneira no estado que durou por não mais que três anos.

Pouco após minha inclusão na “turma do Galba”, como o grupo era conhecido fora da instituição, iniciei meu trabalho no Centro de Estudos Galba Velloso (CEGV). No princípio como bibliotecário, depois como diretor de publicações e, finalmente, em 1969, sucedendo à gestão de José Carlos Pires Amarante, como presidente. O CEGV fora criado em 1964 e tivera como presidentes, em gestões sucessivas, os acadêmicos César Rodrigues Campos, Francisco Paes Barreto e José Carlos Pires Amarante. Como diretor de publicações, em 1968, idealizei a publicação de um livro sobre psicofármacos, já que nada havia sido publicado no Brasil, até aquela data. Pensei numa obra escrita a várias mãos, na qual cada um dos membros do corpo clínico se encarregaria de escrever um capítulo. Combinei com o grupo uma reunião no Centro de Estudos, quando apresentei meu projeto, tendo o mesmo sido aprovado. Foram escolhidos os temas farmacológicos e distribuídos segundo a predileção de cada um. Por unanimidade, tornei-me o editor desta obra que, jamais imaginávamos, marcou época na psiquiatria brasileira. Passaram-se seis meses de trabalho intenso e profícuo. Trabalhamos muito, mas os resultados foram extremamente compensadores.

Nesta época, antes da era das residências de psiquiatria, a “turma do Galba” realizava estudos auto-didáticos, geralmente em grupos e utilizando os tratados de psiquiatria famosos do período. Um deles era o do psiquiatra argentino Juan Beta, Manual de Psiquiatria, livro considerado por demais organicista numa época em que a psicanálise já dominava amplamente a psiquiatria brasileira e mundial. Também o Manual de Psiquiatria, de Mayer-Gross, em que pese sua orientação organicista, era mais aceito que o do Beta. Em contrapartida, Iracy Doyle, com sua Nosologia Psiquiátrica, tinha profundas raízes psicodinâmicas. Era um livro que praticamente decorávamos por inteiro. Outros autores e obras importantes estudados com afinco, em que noites eram varadas sobre suas páginas, em particular na sala do CEGV: Psiquiatria Dinâmica, de Henri Ey, Psiquiatria Clínica Moderna, de Noyes e Kolb, Psicopatologia, de Kurt Schneider, Tratado de Psiquiatria, de Manfred Bleuler, História da Psiquiatria, de Franz Alexander, Psicopatologia Geral, de Karl Jaspers, Temas Psiquiátricos (um extenso tratado de psicopatologia), de Cabaleiro-Goás, Psicologia Médica, de Juan-José Lopez Ibor, os livros de Weitbrecht e Tellembach, Estratégias em psicoterapia, de Jay Haley, e muitos outros, dos quais não me lembro no momento. Tomávamos também conhecimento, a partir de 1968, do trabalho do grande psiquiatra espanhol, Francisco Alonso-Fernandez, com sua obra, considerada “supra-sumo” da psiquiatria e aguardada com ansiedade muito antes de seu lançamento: Fundamentos de la Psiquiatría Actual. Somente no final da década de 1970 surgiu o também muito aguardado Psiquiatria, do Prof. Nobre de Melo. Mas, então, todos nós já estávamos longe do Galba.

Além dos estudos livrescos, com frequência eram convidados grandes experts e profundos conhecedores da psiquiatria para proferirem palestras no CEGV: prof. Clóvis de Faria Alvim, um dos psiquiatras mais cultos que conheci, prof. Paulo Saraiva, que não ficava atrás com seu conhecimento enciclopédico, prof. Hélio Durães Alkmin, prof. Austregésilo Ribeiro de Mendonça, Fernando Megre Velloso, Joaquim Affonso Moretzsohn, Ivan Ribeiro da Silva, Francisco Hugo Badaró, Geraldo Megre de Resende, Aspásia Pires de Oliveira e o prof. José Elias Murad, com suas aulas memoráveis sobre psicofarmacologia.

As tendências entre os internos acadêmicos já se faziam esboçar, a maioria com pendores para os estudos de psicanálise. Alguns foram tomados de verdadeira afeição pela teoria freudiana e pela psicoterapia analítica. No meu caso, em particular, apesar de ter feito análise de grupo por seis meses com o prof. Célio Garcia e quase um ano e meio de análise individual com Jarbas Moacir Portella, o meu namoro com as teorias pavlovianas e sua neurofisiologia aplicada à psiquiatria e psicologia, demonstrou possuir uma força mais vigorosa e suas teorias científicas tiveram para mim o gosto da “verdade”. Éramos todos muito jovens, idealistas e radicais. Não havia espaço para o meio-termo, para a síntese, para o holismo.

Enquanto isso, me formei em Medicina pela UFMG, em dezembro de 1968. Candidatei-me à residência de psiquiatria, criada um ano antes, em convênio da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais com a Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Foi a primeira residência de psiquiatria no estado. Fui aprovado, para meu gáudio e glória e participei, com muita honra, da segunda turma dessa residência. Não poderia ter dado passo mais acertado em minha vida.

A obra Psicofármacos ficou pronta em maio de 1969. Tiragem de dois mil exemplares. Estávamos todos nós radiantes e transpirando felicidade e autoconfiança. Os recursos vieram das economias feitas pela tesouraria do CEGV, durante mais de um ano. Tornou-se uma obra bonita, apesar de simples. Como editor, a dediquei a Jorge Paprocki, com as seguintes palavras: “Ao Dr. Jorge Paprocki. Mestre e amigo”. Meu irmão, Dilermando Corrêa Filho, artista plástico, desenhou a capa, em nanquim, mas tive antes o cuidado de submetê-la à avaliação de todos, quando foi aprovada. O livro rapidamente passou a ser vendido em grande quantidade na Cooperativa Editora e de Cultura Médica. Como enviamos inúmeros exemplares, em forma de permuta, para bibliotecas de universidades, hospitais, instituições psiquiátricas pelo Brasil afora, logo o livro se tornou bastante conhecido. Foi uma obra que marcou época na psiquiatria brasileira e, por mais de seis anos, foi a única sobre psicofarmacologia publicada no Brasil. Apenas em 1975 o prof. José Caruso Madalena, do Rio de Janeiro, publicaria um outro livro na área, com um teor um pouco diferente. Mas uma obra maior e mais atualizada somente foi publicada pelo mesmo Caruso Madalena em 1979, portanto, dez anos após o trabalho da “turma do Galba”.

Em julho de 1969 ocorreu o IX Congresso Brasileiro de Neuropsiquiatria, Neurologia e Higiene Mental, no Hotel Copacabana Palace, Rio de Janeiro. Lá fomos nós, a turma do Galba, capitaneados por Fernando Megre Velloso e Jorge Paprocki, para fazer o lançamento nacional do livro no congresso. Sucesso absoluto. A edição, primeira e única, se esgotou em pouco tempo. Hoje quem possui um exemplar tem uma relíquia nas mãos.



IX Congresso Brasileiro de Neuropsiquiatria, Neurologia e Higiene Mental, 
no Hotel Copacabana Palace, Rio de Janeiro, julho de 1969.
Da esquerda para a direita: César Rodrigues Campos, João Luiz Silva Tony,
Antônio Carlos Corrêa e Jorge Paprocki.


Poucos meses depois, em agosto de 1969, lançamos a Revista do Centro de Estudos Galba Velloso. Era uma idéia que acalentávamos há mais de um ano, paralelamente ao livro Psicofármacos. Mais uma vez, contamos com a colaboração de todos e, principalmente, de Paprocki e Eunice Rangel para viabilizar o sucesso do empreendimento. Contamos com o patrocínio de alguns laboratórios farmacêuticos, o que nos pavimentou o caminho da plena realização da obra. O lançamento do primeiro número se deu nos salões da Associação Médica de Minas Gerais, quando a iniciativa foi saudada por Jarbas Moacir Portella, analista didata do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Muitos de nós fazíamos análise com o Dr. Jarbas, eu inclusive, como já relatado.

A residência de psiquiatria fora criada em 1968, tendo a primeira turma os seguintes residentes: Arlindo Carlos Pimenta, José Carlos Pires Amarante, José Ronaldo Procópio, José de Assis Corrêa, Eudes Ramon Paredes Montilla, João Luiz da Silva Toni, Claudio Pérsio Carvalho Leite, Hélio Roscoe e Virgílio Bustamante Rennó. A segunda turma, de 1969, contava com: Rodrigo Teixeira de Salles, Javert Rodrigues, Maria Auxiliadora Athayde, Maria Muniz Passos (Lia), Maurício Sartori, Vicente Santos Dias, Lélio Marcio Dias e Antônio Carlos Corrêa. A terceira turma, de 1970, era composta por: Adelgício José Melo de Paula, Aluísio Caldas de Azevedo, Antônio Leite Rangel, Argileu Pereira dos Santos, Clovis Figueiredo Sette Bicalho, Delcir Antônio da Costa e Marcos de Melo Couri.

A residência havia sido enriquecida com o aporte de jovens profissionais ao corpo docente. Alguns haviam feito sua formação no Rio de Janeiro, com o prof. Leme Lopes, como foi o caso de André Faria d’Azevedo Carneiro, dono de sólidos conhecimentos da psicopatologia fenomenológica alemã clássica. Os estudos de Karl Jaspers eram obrigatórios, bem como dos filósofos Husserl, Dilthey, Martin Heidegger e outros da escola analítico-existencial alemã. E eram motivos de debates frequentes.

O Galba estava em seu apogeu e era considerado uma das referências da psiquiatria brasileira. Havia inúmeros candidatos à residência de diversas localidades de Minas e de outros estados. Ao mesmo tempo, o prestígio nacional de Jorge Paprocki atingira alturas inimagináveis. Era convidado para eventos pelo País afora. Havia também o interesse da indústria farmacêutica em promover lançamentos de seus produtos no HGV. Tal ocorreu em março de 1970, quando o laboratório Ciba-Geigy planejou lançar o Anafranil injetável, um importante antidepressivo da época, e propôs que o lançamento se realizasse durante um Simpósio Nacional sobre Depressão no próprio HGV. Todos se mobilizaram para o evento, que foi um sucesso, em março de 1970. Personalidades de renome nacional da psiquiatria e de outras especialidades médicas prestigiaram o evento, que também teve o patrocínio da Associação Brasileira de Psiquiatria, então uma jovem de apenas quatro anos de idade. A ABP foi criada em 1966, com a participação ativa de Fernando Megre Velloso e Jorge Paprocki.


No apogeu da atuação de Jorge Paprocki na FEAP e Hospital Galba Velloso.
Da esquerda para a direita: Cristina e Rodrigo Teixeira de Salles, Marcio Sampaio,

Roberto Rangel, Eunice Rangel, José Ronaldo Procópio, Antônio Leite Rangel, 
Jorge Paprocki, Maurício Sartori, Maria Muniz Passos (Lia), Delcir Antonio da Costa
e Antônio Carlos Corrêa.

Antes, em 1969, por inspiração de Jorge Paprocki, a equipe do HGV começou a aventar a hipótese da realização do I Congresso Mineiro de Psiquiatria. Era um evento jamais tentado antes, em função das divisões internas da psiquiatria mineira. Para não melindrar susceptibilidades, todas as grandes figuras da psiquiatria do estado foram convidadas a participar, sem exceção. Houve um apoio maciço de nossa comunidade psiquiátrica que atendeu ao apelo de forma entusiástica e incentivadora. Houve algumas exceções, como de praxe em tudo que se faz em qualquer área. 



Sessão de abertura do I Congresso Mineiro de Psiquiatria, Araxá, 26 a 29 de junho de 1970.
Da esquerda para a direita: Francisco Paes Barreto, José Raimundo Lippi, Oswaldo Morais de
Andrade (ABP), Antônio Carlos Corrêa, Fernando Megre Velloso, Armando Santos
(representante do Governador Israel Pinheiro), prefeito de Araxá e Jorge Paprocki.


Foi planejado o congresso para ocorrer entre 26 e 29 de junho de 1970, no Grande Hotel de Araxá. Tudo foi cuidadosamente planejado e preparado um ano antes do evento. Não tínhamos nenhuma experiência em tais atividades e enfrentamos inúmeras dificuldades, com sacrifício, mas com grande orgulho e satisfação. Este congresso foi um divisor de águas na psiquiatria mineira. Aglutinou um numeroso grupo de psiquiatras de Minas e de outros estados, com ênfase em participantes do Estado de São Paulo, mas vieram profissionais até do Nordeste e do Sul do País. Foi um sucesso. O Dr. Fernando Megre Velloso foi convidado para ser seu presidente de honra. O I Congresso Mineiro de Psiquiatria teve a seguinte composição de suas várias comissões:

Comissão Organizadora
Presidente de honra: Fernando Megre Velloso
Presidente: José Raimundo da Silva Lippi
Vice-Presidente: Francisco Paes Barreto
Secretário: Antônio Carlos Corrêa
Tesoureiro: Marcos Otávio Gonçalves

              Comissão de Divulgação e Imprensa
Eunice Rangel
Paulo Saraiva
Mário Catão Guimarães
Javert Rodrigues
Antônio Leite Rangel 

                              Comissão Científica
Jorge Paprocki
Jarbas Moacir Portela
Sebastião Abrão Salim
César Rodrigues Campos
Maria Auxiliadora de Souza Brasil

Comissão de Finanças
Marcos Otávio Gonçalves
Armando Leite Naves
Rodrigo Teixeira de Salles
João Luiz Silva Toni

Comissão de Recepção e Alojamento
Maria Muniz Passos
Vicente Santos Dias
Marco Aurélio Baggio
Arlindo Carlos Pimenta
Assistente Social Izabel Izilda


I Congresso Mineiro de Psiquiatria - Araxá, 26 a 29 de junho de 1970.
     Apresentação da conclusão de debates de comissão de temas 
específicos. Da esquerda para a direita: Vicente Santos Dias 
(fazendo a apresentação), Arlindo Carlos Pimenta, Antônio Carlos Corrêa, 
Prof. Clovis Salgado, Jorge PaprockI e José Raimundo Lippi.


O temário do Congresso, de acordo com as necessidades básicas da época, foi “O Hospital Psiquiátrico”. Tema candente, mas ainda sem as conotações anti-nosocomiais dos anos que viriam a seguir. O congresso se realizou no esquema de “grupos de discussão”, onde os temas propostos eram debatidos e as conclusões apresentadas em relatório nas sessões plenárias. Os temas abrangeram os seguintes tópicos:

1-   Política Assistencial e o Hospital Psiquiátrico em Minas Gerais

1.1    O papel da Comunidade em relação ao hospital psiquiátrico.
1.2    O papel do hospital psiquiátrico em relação à Comunidade.
1.3    O papel do hospital de agudos no plano de assistência psiquiátrica   
         pública.
1.4    O papel do hospital de crônicos no plano de assistência psiquiátrica
         pública.
1.5    O papel do hospital-dia-noite no plano de assistência psiquiátrica                         pública.
1.6    O papel do ambulatório no plano de assistência psiquiátrica pública.
1.7    O hospital de agudos como unidade de tratamento intensivo.
1.8    Organização do hospital psiquiátrico sob o ponto de vista técnico.
1.9    Organização do hospital psiquiátrico como fator terapêutico.
1.10  Critérios de avaliação de eficácia de um plano de assistência                               psiquiátrica.

2-   O Ensino e Pesquisa no Hospital Psiquiátrico em Minas Gerais

2.1   O hospital psiquiátrico como centro de ensino.
2.2   O papel do hospital psiquiátrico na formação de pessoal
        de nível superior.
2.3   O papel do hospital psiquiátrico na formação de pessoal
        de nível médio.
2.4  O papel do hospital psiquiátrico como centro de pesquisa.
2.5  Critérios de avaliação da eficácia de um plano de ensino e
       treinamento.

3-   Posição Atual de Terapêuticas no Hospital Psiquiátrico

3.1  Posição atual das terapêuticas biológicas no hospital
       psiquiátrico.
3.2  Posição atual das terapêuticas farmacológicas no hospital
       psiquiátrico.
3.3  Posição atual da psicoterapia individual no hospital
       psiquiátrico.
3.4  Posição atual da psicoterapia de grupo no hospital
       psiquiátrico.
3.5  Posição atual dos grupos operativos no hospital
       psiquiátrico.
3.6  Posição atual da praxiterapia no hospital psiquiátrico.
3.7  Posição atual da arteterapia no hospital psiquiátrico.
3.8  Posição atual da ambientoterapia no hospital psiquiátrico.

4- Definição de Papéis Dentro do Hospital Psiquiátrico em Minas Gerais
    4.1 O papel do psiquiatra em um hospital psiquiátrico.
    4.2 O papel do psicanalista em um hospital psiquiátrico.
    4.3 O papel do psicólogo em um hospital psiquiátrico.
    4.4 O papel do assistente-social em um hospital psiquiátrico.
    4.5 O papel da enfermeira em um hospital psiquiátrico.
    4.6 O papel do praxiterapeuta em um hospital psiquiátrico.
    4.7 O papel do administrador em um hospital psiquiátrico.
    4.8 O papel do estagiário em um hospital psiquiátrico.
    4.9 Conceituação e liderança de equipe psiquiátrica.

Como se pode observar pelo temário, as preocupações da psiquiatria brasileira, em fins da década de 1960, eram semelhantes às preocupações da psiquiatria mundial, em que o exercício do papel dos diferentes profissionais era frequentemente questionado. Havia a preocupação em acompanhar a evolução dos grandes centros mundiais da psiquiatria e sua adaptação à nossa realidade mineira. De certa forma, pode-se dizer que esses temas são questões, na maioria das vezes, ainda não resolvidas entre nós, passados 44 anos do evento que deu início a uma psiquiatria mineira mais consciente de seus objetivos, mais pertinaz na busca da realização de seus sonhos, mais transparente e com melhores definições do trabalho de cada um dentro de uma equipe psiquiátrica.



Uma das sessões do congresso. Da esquerda para a direita:
Francisco Paes Barreto, Mario Catão Guimarães, Cesar Rodrigues Campos,
Maria Muniz Passos (Lia), Antônio Carlos Corrêa, Fernando Megre Velloso,
Joaquim Afonso Moretzsohn, José Raimundo Lippi, Jorge Paprocki.

Jorge Paprocki foi Presidente do Departamento de Neuropsiquiatria (posteriormente Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica) da Associação Médica de Minas Gerais no biênio 1965-1967. Sua gestão foi a mais profícua do período, como o atestam as atas contidas no Livro de Atas da Associação Mineira de Psiquiatria (AMP), entidade que sucedeu o Departamento. Todos os meses convidava, como palestrantes, os mais ilustres psiquiatras mineiros do período: professores Clóvis de Faria Alvim, Paulo Saraiva, Austregésilo de Mendonça, José Elias Murad, Fernando Megre Velloso, Joaquim Affonso Moretszohn, Haley Alves Bessa, além dos psicanalistas Malomar Lund Edelweis (o fundador do Círculo Mineiro de Psicologia Profunda, posteriormente Círculo Psicanalítico de Minas Gerais), Hélio Pellegrino (mineiro que morava no Rio de Janeiro), Jarbas Moacir Portella, Antônio Ribeiro, Célio Garcia e Eunice Rangel. Foi ele um dos mais influentes profissionais que batalharam pela fundação da Associação Mineira de Psiquiatria, que se deu em novembro de 1970.

Paprocki foi um dos líderes regionais que fundaram a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em agosto de 1966. Desde então, se manteve como um de seus mais respeitáveis e prolíficos membros, sendo frequentemente convidado para participar de eventos nacionais e internacionais. Na área de pesquisas, sempre foi a grande referência da psiquiatria mineira. Atuou na entidade, como assessor informal ou conselheiro honorário, até recentemente.

Em junho de 1971, o grupo do HGV e FEAP, em conjunto com a AMP, o Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFMG mais uma vez tendo Jorge Paprocki à frente, organizou o II Congresso Mineiro de Psiquiatria, no Hotel Glória de Caxambu. Foi praticamente uma sequência do anterior, com uma temática muito próxima. Houve avanços sim, na definição de papéis, no aprimoramento dos métodos de ensino da psiquiatria, no desenvolvimento de pesquisas clínicas e psicofarmacológicas, na melhora do relacionamento com as especialidades a ela ligadas para a conformação de uma adequada equipe interdisciplinar. Foi uma constante a preocupação com o aprimoramento técnico dos profissionais. Na época, como já sabemos, a psicanálise predominava esmagadoramente como método de abordagem psicológica do paciente, tanto intra como extra-muros. Mas não havia uma ruptura, uma quebra na linha de condutas profissionais, como acabou ocorrendo poucos anos depois.

Entretanto, as divisões dentro da psiquiatria mineira se acentuaram em fins da década de 1960. O que ocorreu, em 1971, foi uma fratura dentro do próprio grupo do HGV, motivado por forças destrutivas decorrentes de vaidades pessoais, competição, luta por poder e disputa política. Como sempre acontece nas instituições bem sucedidas e formam uma grande equipe de pessoas com mentes e filosofias de vida diferentes e distintos propósitos profissionais.

Em 1968, havia sido criada pelo Governo Israel Pinheiro, a Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica (FEAP), baseada na Lei 4.953, de 25 de setembro de 1968 e, pelo Decreto 11.531, de 12 de dezembro de 1968. Era Secretário de Saúde o prof. Clóvis Salgado da Gama (1906-1978). Essa política de se criar “Fundações” decorreu das dificuldades enormes de administração de diferentes instituições, na mesma área, sem uma política unificada, um sistema gerencial único, que reduzisse os gastos financeiros enormes e pulverizados, e que otimizassem os recursos materiais e de pessoal que nelas trabalhavam, já que o sistema anterior passara a se tornar inviável para o estado. Foram diversas as fundações criadas no período, tanto na área médica quanto em outras áreas da administração estadual.

Em 1971, a FEAP estava em crise. Não sei detalhar exatamente em quais setores. Provavelmente questões de má gestão administrativa, financeira e de recursos humanos. Esse seria um tema muito interessante para pesquisadores investigarem no futuro. Nesse período, a maioria dos membros da equipe do HGV, da década de 1960, já havia deixado o hospital, tanto os diplomados pela residência como os que a ela antecederam. Todos foram tentando alçar novos voos, lançando-se em novos projetos, alguns solo, outros formando distintas equipes para atuação em diferentes instituições, onde a perspectiva de melhor renda financeira e projeção profissional era um fator real. Houve uma dispersão em massa, uma verdadeira explosão de uma estrela supernova, que irradiou astros luminosos para todos os lados da galáxia psiquiátrica mineira e brasileira. Muitos deixaram o estado em busca de novas oportunidades. A maioria aqui permaneceu, formando pequenos grupos de atuação em equipes de distintos hospitais, clínicas particulares, novos empreendimentos e nos consultórios. Novos sonhos, vida nova. Quase todos se deram muito bem em suas novas funções, em razão da excelente formação tida em todos esses anos no HGV.

O ano de 1971 começou com uma ferrenha disputa eleitoral pela presidência do Departamento de Psiquiatria da Associação Médica de Minas Gerais, futura Associação Mineira de Psiquiatria. No páreo estava César Rodrigues Campos, apoiado por parcela da “turma do Galba” e, como adversário político, o prof. Paulo Saraiva, apoiado maciçamente pelos psiquiatras dos diversos hospitais e clínicas de Minas Gerais. Sentia-se um temor no ar, um clima de receio de que os discípulos de Jorge Paprocki assumissem o poder numa entidade de classe que congrega os colegas de todo o estado e de que tentassem impor seus métodos de trabalhos a todos. Nos hospitais e clínicas havia muitos profissionais que não adotavam a psicanálise como sua prática profissional. Venceu, por ampla margem de votos, o prof. Paulo Saraiva. Iniciava-se aí o racha na psiquiatria mineira que persiste até os tempos atuais.

Em fins de 1971, Jorge Paprocki deixou a direção da FEAP, num rompimento com Fernando Megre Velloso. No ano seguinte, em 1972, Jorge Paprocki, já desligado de suas atividades médicas no serviço público, associa-se a Luis Bustamante e funda o Grupo de Estudos de Psicofarmacologia Clínica. A partir daí a carreira de Paprocki sofreu uma profunda inflexão, pois prosseguiu solo em sua brilhante atividade profissional. Continuou até o século XXI com suas pesquisas em psicofarmacologia clínica, suas supervisões na clínica psiquiátrica de jovens psiquiatras que desejavam iniciar atividades em experimentação e pesquisas, como palestrante brilhante e sofisticado escritor, tanto de textos científicos quanto em outras áreas do conhecimento. Paprocki continuou sendo uma referência na psiquiatria nacional até o fim. Era constantemente convidado para dar palestras e cursos em eventos pelo País. Foi um dos mais premiados e prolíficos psiquiatras da História da psiquiatria no Brasil. Era admirado por todos, inclusive por aqueles que seguiram rumos opostos quando a psiquiatria mineira foi politizada a partir da década de 1980. Foi uma das maiores referências da psiquiatria brasileira por mais de meio século. Enfim, ao perdermos Paprocki perdemos uma personalidade única e insubstituível. 

Que descanse em paz! 



terça-feira, 11 de agosto de 2015

Paramnésias de reduplicação





Neste quadro, os pacientes afirmam a dualidade de dois locais diferentes com o mesmo nome. Desta forma, podem existir dois hospitais com o mesmo nome, o falso, onde o paciente está internado, e o verdadeiro, localizado em outro lugar totalmente diferente, onde o paciente alega ter estado anteriormente. O paciente pode dizer que existem duas ruas com o mesmo nome, a falsa, onde ele se encontra, e a verdadeira, por onde, com freqüência, ele circula. Pode ocorrer também duplicação de localizações geográficas: uma, onde ele se encontra e que diz ser muito parecida com a verdadeira, e a correta que está localizada em outro local bem distinto (Gil, 2002). Este delírio foi descrito por Arnold Pick em 1903.


Arnold Pick (1851-1924)

É um quadro que revela uma dificuldade de identificação (hipoidentificação), associada a um comprometimento no sentimento de familiaridade e conhecimento, vindo acompanhado de um delírio, que é a idéia da duplicação de pessoas e coisas. Esta patologia pode se relacionar a pessoas, objetos, animais domésticos, partes do corpo (ter mais de duas pernas, dois troncos, duas cabeças, etc.). Roane e colaboradores (1998) descreveram que o paciente pode dizer que está em dois lugares ao mesmo tempo, o que pode ser visto como a união de dois lugares diferentes no mesmo local (sua residência e o hospital), o que é chamado de delírio de ubiqüidade. Gil (2002) relata que a reduplicação do próprio paciente é a idéia firmemente consolidada de que há uma outra pessoa que é ele mesmo, que o verdadeiro eu-mesmo foi substituído ou que outras pessoas mudaram de aparência para assumir a sua própria.

A síndrome delirante de má identificação, descrita por Roane e colaboradores (1998), tem sido associada a vários transtornos neurológicos. Foram relatados três casos em Parkinson e demência, tratados com medicação dopaminérgica. Essa associação da síndrome com parkinsonismo pode resultar da combinação de psicose dopaminérgica e disfunção cognitiva que envolve especialmente o lobo frontal. Essa associação delirante com parkinsonismo pode ser mais freqüente do que se imaginava antes.




Em situações de traumatismo crânio-encefálico (Gil, 2002), pode ocorrer a paramnésia de reduplicação, como naquele em que um indivíduo que sofreu um acidente de carro, declarar que sofreu vários acidentes semelhantes.

Gil (2002), relata que a apresentação clínica pode não ser igual em pacientes portadores da demência de Alzheimer, que não se reconhecem num espelho e identificam a própria imagem como a de outra pessoa (prosopagnosia).

Este quadro pode ser difícil de ser distinguido da heautoscopia. Autoscopia, alucinação especular ou heautoscopia é uma alucinação cujo objeto é o próprio sujeito: ele acredita ver a si mesmo como num espelho, como uma cópia dele mesmo. Em outras situações, o paciente pode ter a impressão de sair do corpo, que ele pode ver, geralmente de cima, como se estivesse sobre um telhado ou em um andar mais elevado com vista para baixo. Esta síndrome pode ocorrer em pacientes epilépticos, com crises parciais ou complexas e generalizadas. O EEG revela descargas na região temporal direita ou esquerda. Foram observadas lesões nas regiões temporal, parietal ou occipital. Pode também ser encontrada nas enxaquecas, bem como em estados confuso-oníricos. Não é raro serem também observadas em quadros psicóticos, como a esquizofrenia, associada ou não a alucinações. Por fim, podem ser observadas em estados ansiosos, situações de estresse e fadiga intensa e mesmo como alucinações hipnagógicas em indivíduos normais vivendo sob estresse. Este quadro foi muito descrito na literatura universal por autores como Goethe, Dostoievsky, Maupassant, Musset e outros (Gil, 2002).




As paramnésias de reduplicação também podem ser encontradas na esquizofrenia e outras psicoses, porém isso não elimina uma patologia orgânica associada. Podem surgir mesmo quando não há uma síndrome amnésica. Geralmente são decorrentes de uma vasta conjunção de patologias orgânicas cerebrais: traumatismos crânio-encefálicos, AVC isquêmico, demências, e como seqüela da eletroconvulsoterapia.
As paramnésias de reduplicação ambientais, conhecidas como delírios espaciais (Gil, 2002), combinariam comprometimento no tratamento espacial da informação, decorrente de lesão no hemisfério direito, com um desconhecimento desse déficit, decorrente de lesão ou hipofuncionamento no lobo frontal.

O quadro se complica quando se sabe que, num mesmo paciente, podem estar presentes várias formas de paramnésias de reduplicação. Em decorrência disto, levantou-se a hipótese de uma desconexão entre várias estruturas neurais. Uma desconexão entre o hipocampo e outras áreas envolvidas na armazenagem da memória poderia acarretar dificuldades de associar novas informações a lembranças antigas, o que levaria à reduplicação (Staton et al., 1982; in: Gil, 2002). Desconexão entre áreas têmporo-límbicas direitas e o lobo frontal comprometeria a coerência das percepções, da memória, dos contextos emocionais, do sentimento de familiaridade das pessoas e lugares (Alexander et al., 1979; in: Gil, 2002). Ruptura inter-hemisférica também foi aventada como possível origem desses quadros. Lesão no hemisfério direito liberaria o hemisfério esquerdo, que também ficaria privado de informações corretas, o que poderia estar subjacente às idéias delirantes (Vighetto, 1992; in: Gil, 2002). 

Para saber mais :

CORREA, A.C.O. Memória, Aprendizagem e Esquecimento. A memória através das neurociências. (2010). Rio de Janeiro. Editora Atheneu.
GIL, R. (2002). Neuropsicologia.  São Paulo. Livraria Santos Editora.