quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Psicoses e envelhecimento - Cinema e Psiquiatria II- O Gênio de Fritz Lang




Quando se aborda o tema dos transtornos psiquiátricos retratados pelo cinema, dentre alguns obrigatórios na filmografia universal, estão os três filmes do mestre alemão Fritz Lang, na sua trilogia do Dr. Mabuse. Aborda aqui a questão quase mítica do velho louco. Tudo começa em 1922, quando Lang realizou o seu Dr. Mabuse, o jogador. É a estória de um mágico que, com o correr do tempo e envelhecendo, fica louco e deseja todo o poder para si. Hipnotiza as pessoas para se apoderar de suas vontades e, com isso, cometer as maiores atrocidades e crimes possíveis. Para ele não há limites, não há moral, não há ética. Tudo é possível para alimentar sua insaciável fome de poder e força. Fritz Lang, em uma realização magistral, nos mostra a face da insanidade, mesmo que já em avançadas idades.


                                                    Fritz Lang, na década de 1950.

O maior nome do Expressionismo Alemão foi Fritz Lang. Nascido em Viena, em 1890, em pleno apogeu do Império Austro-Húngaro, era filho de um arquiteto. Após estudar, por pouco tempo, arquitetura na Universidade Técnica de Viena, viajou pelo mundo entre 1910 a 1914. Viveu algum tempo em Paris, onde ganhou a vida como pintor.

Com o advento da I Guerra Mundial, dela participou como oficial do exército austro-húngaro, tendo sido gravemente ferido em combate em junho de 1916. Durante sua convalescença, escreveu roteiros para filmes, em particular de suspense e horror. Após a guerra, em 1919, foi para Berlim a fim de trabalhar com o produtor alemão Erich Pommer, então o maior produtor cinematográfico germânico. Parte do roteiro do filme Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene, foi escrito por Fritz Lang.

O Expressionismo Alemão representa um gênero cinematográfico cujo estilo tenta descrever emoções subjetivas e as reações que os objetos e acontecimentos provocam nas pessoas, e não a realidade objetiva. É um estilo duro, arrojado e visualmente intenso. Caracteriza-se por uma fotografia de forte contraste claro-escuro, ângulos de câmera inusitados, por exemplo, tomadas de câmera de baixo para cima ou de cima para baixo, iluminação indireta, cenários distorcidos e deformados seguindo o expressionismo na pintura, temática impactante, chocante, inusitada, cruel, assustadora, em que, muitas vezes, o final é inesperado e nem sempre de acordo com o desejo da plateia.

Seu primeiro filme de sucesso foi Der müde Tod (1921), porém antes, entre 1919 e 1920, já ficara conhecido como diretor com a série intitulada Die Spinnen.  Em 1922, realizou o clássico Dr. Mabuse, der Spieler (Dr. Mabuse, o jogador), no qual estuda um gênio criminoso, representado pela  figura de um senhor idoso, completamente louco, cujo único objetivo era destruir a cidade e ficar no poder sozinho. Este foi o primeiro de uma trilogia, sempre representando a figura do velho louco, sem noção de limites e princípios.


Em 1924, realizou Die Nibelungen (Os Nibelungos), baseado no romance medieval alemão, redescoberto em 1755 e tornado célebre por Richard Wagner. É o relato de uma vingança que leva à auto-destruição.  Em 1926, realizou seu filme mais famoso e considerado por muitos o filme de ficção científica mais importante da história, Metropolis. É baseado no livro de sua esposa Thea von Harbou, que conhecera em 1921, quando da realização do filme Der müde Todt e com quem se casou em 1922.




Em 1931, realizou seu filme alemão mais famoso M (M, o vampiro de Düsseldorf), e seu primeiro filme sonoro. É um clássico imortal do cinema que mostra um assassino de crianças que confessa o seu comportamento criminoso compulsivo. Este personagem tornaria célebre e imortal o ator austríaco Peter Lorre, que o acompanharia em outros filmes e no exílio, nos Estados Unidos. É um dos maiores clássicos do cinema de todos os tempos, refilmado por outros diretores. Sua temática, claramente anti-autoritária e defensora de uma moral e ética públicas, torná-lo-ia, em breve, persona non grata ao regime nazista.



Em 1932, realizou o segundo filme da trilogia citada, Das Testament des Dr. Mabuse (O Testamento do Dr. Mabuse), onde novamente a figura do velho louco reaparece. O personagem encarna tão bem a filosofia nazista que, em 1933, o chefe da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, logo após o partido nacional-socialista ter tomado o poder, proibiu o filme em território alemão. Mesmo tendo sido convidado a supervisionar a indústria cinematográfica alemã e a fazer filmes de propaganda, Lang abandonou a Alemanha nesse mesmo dia. Viveu em Paris, onde realizou um filme com Charles Boyer. Logo após, deixou a Europa e se estabeleceu nos Estados Unidos, onde, em 1935, recebeu a cidadania deste país. Nesse intervalo de tempo, sua mulher pediu o divórcio e aderiu ao Nazismo.

Em 1936, realizou seu primeiro filme norte-americano, Fury, que faz o estudo de uma multidão que comete um linchamento. Muitos o consideram seu melhor filme da fase americana. Em 1941, com o surgimento do cinema noir, Fritz Lang se destacou como um de seus mais prolíficos e geniais diretores. São inesquecíveis e imortais suas obras noir: Man Hunt (1941), Ministry of Fear e The Woman in the Window (1944), Scarlet Street (1945), Secret Beyond the Door (1948), House by the River (1950), Clash by Night (1952), The Blue Gardenia e The Big Heat (1953), Human Desire (1954), While the City Sleeps e Beyond a Reasonable Doubt (1955), consideradas verdadeiras obras-primas do cinema.

Em 1956, cansado de produtores que tentavam impor suas idéias e métodos, com as quais se rebelava, deixou os Estados Unidos e voltou para a Alemanha. Em 1959, realizou dois filmes alemães na Índia.






Em 1960, realizou seu último filme Die Tausend Augen des Dr. Mabuse (Os Mil Olhos do Dr. Mabuse), completando a sua trilogia expressionista, retomando a estória do velho louco que planeja destruir a cidade, seu país e o mundo.

Em 1964, quase cego, presidiu o Festival de Cannes, na França.

Fritz Lang morreu, em 1976, em Los Angeles, Califórnia, e foi sepultado no Forrest Lawn-Hollywood Hills Cemetery. Seu legado é uma das filmografias mais importantes da história.

 

As psicoses do envelhecimento no cinema



O tema das psicoses tardias, parafrenias tardias, ou psicoses que surgem durante o processo de envelhecimento, têm sido tema de diversas áreas das artes e da literatura. O cinema tem retratado  esses quadros psiquiátricos periodicamente, notadamente o cinema clássico. O Expressionismo Alemão foi o primeiro a abordar temas hoje tão estudados pela ciência. Um dos grandes filmes que retratou essa candente questão foi uma das maiores obras primas da história do cinema: Dies Irae, do grande cineasta dinamarquês, Carl Theodor Dreyer, que viveu boa parte de sua vida na Alemanha, daí ser considerado um dos grandes mestres do Expressionismo Alemão. Aliás, essa escola, nos legou algumas das maiores preciosidades cinematográficas de todos os tempos, como veremos a seguir.

Vamos ao primeiro filme que desejamos apresentar aos interessados na sétima arte.
Dies Irae (Vredens Dag), lançado no Brasil com o nome de Dias de Ira, ou Dias de Fúria, é um filme de 1943, portanto, quando o mundo vivia os horrores da II Guerra Mundial e seus horrores, em particular o Holocausto, que vitimou mais de 6 milhões de judeus.

Sua ficha técnica é a seguinte:

Dies Irae (Vredens Dag)
Ano: 1943
Diretor: Carl Theodor Dreyer

Roteiro: Hans Wiers-Jenssen (baseado na obra teatral "Anne Pedersdotter" e Carl Theodor Dreyer

Gênero: Drama
Duração: 97 min
País: Dinamarca
Língua: Dinamarquês


Elenco:
Lisbeth Movin, Thorkild Roose, Preben Lendorff-Rye, Anna Svierker, Sigrid Neilendam.
Sinopse:
Na Dinamarca do século XVII, mais precisamente em 1623, uma senhora idosa  (Anna Svierker) é acusada de bruxaria. À medida em que, de forma sombria, ocorre a prisão, confissão sob tortura, condenação à queima na fogueira e execução da senhora, a jovem esposa, Anne, (Lisbeth Movin) de um pastor da cidade, Absalom Pedersson (Thorkild Roose), entrando na velhice, apaixona-se pelo filho deste, de um matrimônio anterior (Preben Lendorff-Rye), de idade aproximada à de Anne, e que acabava de retornar à cidade, após longo tempo fora. O pastor fazia parte dos religiosos que interrogaram a idosa e a sentenciaram, apesar das tentativas dele de amenizar a pena. O sentimento misto de culpa, angústia e medo, faz com que sua esposa revele ao marido o que ocorreu, o que acaba por provocar sua morte, decorrente de um ataque cardíaco fulminante. Durante as cerimônias do funeral, a mãe do pastor, sempre enciumada da nora, denuncia a jovem viúva como também sendo uma bruxa. Cenas dramáticas são vistas durante toda a exibição da película, como as que, em pleno desespero, a senhora idosa amaldiçoará toda a família do pastor, a quem culpa por sua condenação.

 
 
 

Uma das cenas mais marcantes deste filme é aquela em que a senhora idosa, acusada de bruxaria, é torturada pela Inquisição. Essa cena retrata de forma bem realista o que foi o processo de tortura medieval instituído pela Inquisição para a obtenção de confissões de culpa de heresia, apostasia, pacto com o diabo, exercício em segredo de práticas religiosas não-católicas (como foi o caso dos judeus ou cristãos-novos). Um método repulsivo e intolerável sob todos os aspectos, que deu origem aos métodos de tortura empregados no século XX pelos regimes nazista e comunista contra seus adversários. Nas cenas apresentadas no link abaixo podemos ver toda esta barbaridade:

https://docs.google.com/file/d/0B9zBbq3OaOaNSXBZb291VGZPV1k/edit?usp=sharing


Carl Theodor Dreyer é uma figura exponencial no panorama cinematográfico mundial, por sua composição filmica elaborada, porém sóbria, baseada em reminiscências pictóricas, seu cuidadoso tratamento estético, a fim de obter uma profunda exploração psicológica de seus personagens. A força emocional lançada pelas suas imagens e personagens e sua busca por matérias espirituais e metafísica é outra marca registrada do diretor.

Dies Irae aborda questões fundamentais como a intolerância, o dogmatismo religioso, a repressão moral, o desejo sexual descontrolado, tudo sob um título sombrio e marcante, abordando a questão da bruxaria, após onze anos da filmagem de sua obra anterior, "Vampiro, a bruxa vampiro", de 1932.

Esta temática está muito vinculada aos conteúdos delirantes, notadamente no curso do envelhecimento: perseguição, culpa, pecado, remorso, punição, ódio, intolerância.

Um filme imperdível para quem estuda essas questões!