terça-feira, 26 de novembro de 2013

A longevidade de certos povos: Abkhazia.




Abkhazia. Encyclopaedia Britannica.


          Em 1990, quando passei a ministrar os cursos de psicogeriatria em Belo Horizonte, um trabalho pioneiro no Brasil, traduzi este texto, publicado pela antropóloga norte-americana Sula Benet, sobre a vida dos velhos na Abkhasia, uma região montanhosa, encravada na República da Geórgia, então pertencente ao império da União Soviética. Este texto foi escrito pela grande especialista americana após uma de suas inumeráveis viagens àquele país, conhecido pela grande longevidade de sua população. Junto com os Hunzukuts, povo que vive nas montanhas do Tibet, próximo à fronteira entre Paquistão e Índia, e Los Viejos, povo que vive no Vale do Vilcabamba, nas montanhas dos Andes equatorianos, são os Abkhasianos um dos povos mais longevos do mundo. Existem muitas lendas sobre a origem de sua longevidade que têm percorrido o mundo na última metade do século XX e no século atual. Há muito mito e desinformação. Muito desse mito foi cultivado pelo regime vigente na União Soviética, que via, assim, uma forma de propaganda favorável ao seu regime. Pesquisadores e gerontólogos independentes de diversos países desenvolvidos estiveram no Cáucaso para estudar este fascinante povo das montanhas. Muitos mitos se desfizeram e a verdade veio à tona. Este artigo, escrito para o The New York Times, em 1971, portanto, em plena guerra fria, nos dá, entretanto, uma visão muito realista, humana e mais científica do que realmente ocorria e continua a ocorrer. Vale a pena dar uma conferida e ler este fascinante texto desta corajosa antropóloga. Uma lição de gerontologia e, mais, uma lição de vida e harmonia com a natureza. Uma lição para o mundo nos conturbados tempos atuais.



              Porque eles vivem até os 100 anos ou mais em ABKHASIA?


Sula Benet

                                              Reproduzido de: Reflections. A Merck Sharp & Dome Publication for the psychiatrist. Vol. VII. No. 5, 1972, pp. 25-33.


Não muito tempo atrás, na Vila de Tamish, na república Soviética de ABKHASIA, eu levantei meu copo de vinho para brindar um homem que não parecia ter mais de 70 anos. "Possa o senhor viver tanto quanto Moisés (120 anos)," eu falei. Ele não ficou muito satisfeito. Ele tinha 119.

Por séculos, os Abkhasianos e outros povos Caucasianos têm sido mencionados nas crônicas dos viajantes, surpresos com sua longevidade e boa saúde. Mesmo agora, ocasionalmente, jor­nais fazem reportagens nos Estados Unidos e em outros lugares (Nunca escondendo completamente certo ceticismo). Falam de Abkhasianos que reivindicam ter 120, algumas vezes 130 anos. Quando eu voltei de Abkhasia para Nova Iorque, mostrando foto­grafias e estatísticas, insistindo que tais estórias são reais, e também preocupada com o por que, meus amigos america­nos invariavelmente respondiam com outra pergunta zombeteira, que continha sua própria resposta: " Iogurte?". De fato, não propriamente iogurte, mas os Abkhasianos bebem uma grande quantidade de creme de leite especial.

Abkhasia é uma terra dura - Os Abkhasianos, expressam mais orgulho que ressentimento sobre isto, dizem que é um "re­pensamento" de Deus - Mas um muito bonito; se os Abkhasianos estão corretos sobre sua origem mística, Deus teve um segundo pensamento muito bom. Abkhasia é subtropical, acompanhando em sua costa o Mar Negro, de relevo alpino se alguém viaja do mar diretamente para trás, através de populosas terras baixas e vales, para a principal fileira das montanhas Caucasianas.
Os Abkhasianos tem estado por lá, há pelo menos 1.000 anos. Por séculos eles foram boiadeiros numa terra infértil, más agora seus vales e contrafortes estão plantados com chá e tabaco, e eles retiram sua subsistência largamente da agricul­tura. São 100.000 Abkhasianos, o que não é a quinta parte da população total da autônoma República Abkhasiana, que é, admi­nistrativamente, parte da Geórgia, local de nascimento de Jo­seph Stalin; o resto da população é composta de Russos, Gregos e Georgianos. De qualquer modo, a maioria das pessoas do Go­verno são Abkhasianas, e ambos, a língua oficial e o estilo de vida através da Região, são Abkhasianos. A cidade de Sukhumi é a sede do Governo e a porta de chegada para navios carregados de turistas estrangeiros. Eles são frequentemente vistos pelas ruas da cidade, cuja população inclui relativamente poucos Abkhasianos. Mesmo aqueles que moram e trabalham na cidade tendem a considerar as vilas de suas famílias como realmente as suas casas. Nas vilas, 575 delas entre as montanhas e o mar, que atinge populações de algumas centenas a alguns milha­res, a maioria dos Abkhasianos vive e trabalha em fazendas coletivas.
A primeira vez que fui lá foi no verâo de 1.970 atenden­do a um convite da Academia de Ciências da USSR. Os Abkhasia­nos foram fascinantes; eu voltei no verão passado e voltarei outra vez no próximo ano. Foi enquanto entrevistava pessoas que haviam participado dos primeiros esforços na civilização, que eu tomei consciência de um número não usualmente grande de pessoas, que atingiam a idade de 80 a 119 anos de idade, e ainda faziam parte da vida coletiva que eles ajudaram a organizar.
Depois de passar meses com eles, eu ainda acho impossível julgar a idade dos mais velhos Abkhasianos. Sua aparência ge­ral não nos dá uma pista: Você sabe que ele é velho por causa de seus cabelos grisalhos e das linhas de suas faces, mas têm eles 70 ou 107? Eu tentei adivinhar "70" para todos os velhos que eu encontrei na Abkhasia, e na maioria das vezes eu estava errada.
É como se as mudanças fisicas e psicológicas que para nós evidencia processo de envelhecimento tinham, nos Abkhasianos, simplesmente parado num certo ponto. A maioria trabalha regu­larmente. Eles também foram abençoados com uma boa visão, e a maioria deles conserva os próprios dentes. A postura deles é incomumente ereta, mesmo em uma idade avançada, muitos andam mais de três quilômetros e meio por dia e nadam nas nascentes das montanhas. Eles aparentam saúde, e são pessoas bonitas. Os homens mostram-se fãs de enormes bigodes e são magros mas não frágeis. Existe um velho ditado que diz que quando o homem se deita de lado, sua cintura deve ser tão pequena que um cachor­ro possa passar por baixo dela. As mulheres têm cabelos escu­ros e também são esbeltas, de compleição clara e sorriso tími­do.

Não existe um número preciso para os idosos na Abkhasia, mas na vila de Dzhgerda, a qual eu visitei no verão passado, existiam 71 homens e 110 mulheres com idade entre 81 e 90 anos e 19 pessoas com mais de 91 - 15% da população da vila de 1.200 pessoas. E vale notar que esta extraordinária porcenta­gem não é o resultado de migração dos jovens: Os Abkhasianos, jovens e velhos, preferem estar onde estão, e raramente via­jam, muito menos migram. Em 1.954, o último ano em que cifras totais foram conseguidas, 2,58% dos Abkhasianos tinham mais de 90 anos. Comparando grosseiramente as cifras por toda a União Soviética e os Estados Unidos foi de 0,1% e 0.4% respectiva­mente.

Desde 1.932, que a longevidade dos Abkhasianos tem sido sistematicamente estudada em várias ocasiões por pesquisadores soviéticos e Abkhasianos e eu tive total acesso ao seus dados através do Instituto de Etnografia em Sukhumi. Estes estudos têm mostrado, em geral, que sinais de arterioesclerose, quando eles aparecem, foram encontrados em pessoas extremamente ve­lhas. Um pesquisador que examinou um grupo de Abkhasianos com mais de 90 anos, achou que aproximadamente 40% de homens e 30% de mulheres tinham visão boa o suficiente para ler e enfiar uma agulha sem óculos, e mais de 40% tinha uma audição razoa­velmente boa.

Nâo existe nenhum caso de doença mental ou câncer nestes 19 anos de estudo de 123 pessoas com mais de 100 anos.

Neste estudo que começou em 1.960 pelo Dr. G. M. Sichina­va do Instituto de Gerontologia em Sukhumi, os idosos mostra­ram extraordinária estabilidade psicológica e neurológica. A maioria deles tinha uma clara recordação do passado distante, mas uma recordação não tão boa para eventos mais recentes. Al­guns revertem este padrão, mas um grande número deles tem boa memória tanto para o passado distante quanto para eventos mais recentes.

Todos possuiam boa orientação espaço-temporal. Todos mos­traram um pensamento lógico e claro, e a maioria estimava de maneira correta suas capacidades físicas e mentais. Todos mos­traram muito interesse nos negócios de suas famílias, nos eventos sociais e coletivos de suas comunidades. Todos eram ágeis, bem arrumados e limpos.

Os Abkhasianos são raramente hospitalizados, exceto por desinterias e nascimentos. De acordo com os médicos que obser­varam seus trabalhos, eles são especialistas em tratar braços e pernas quebradas. Os séculos de equitação de­ram a eles as duas coisas: necessidade e prática.

A visão dos Abkhasianos do processo de envelhecimento é clara a partir do seu próprio vocabulário. Eles não têm uma frase para "Pessoa velha"; os indivíduos acima de 100 anos são chamados de "Longevos". A morte, na visão dos Abkhasianos, não é o fim lógico da vida, mas algo irracional. Os idosos parecem perder forças gradualmente, "Murcham" em tamanho e finalmente morrem; quando isto acontece os Abkhasianos mostram seu pesar furiosa­mente, até mesmo violentamente.

Para o restante do mundo descrença é a resposta à morte, não para os Abkhasianos, que se preocupam apenas com o quanto eles vivem. Breve­mente não vai mais haver questões a respeito de sua longevida­de.

Todos os pesquisadores médicos tomam bastante cuidado na verificação das informações que recebem nas entrevistas. Al­guns dos homens estudaram e serviram ao exército e os prontuá­rios militares invariavelmente confirmam suas próprias contas. Muita documentação está incompleta simplesmente porque os Abkhasia­nos não tinham uma linguagem escrita funcional até depois da revolução Russa.

Mas porque eles vivem tanto? Ausência de uma história es­crita, e o período relativamente recente no qual estudos médi­cos e antropológicos estão sendo feitos, impedem uma resposta clara.

A seleção genética é uma possibilidade óbvia. Constantes combates corpo a corpo durante muitos séculos da existência Abkhasiana pode ter eliminado a má visão, a obesidade e outros defeitos físicos, produzindo Abkhasianos mais saudáveis a cada nova geração. Mas falta documentação para comprovar para tal processo evolu­tivo.

Quando perguntei aos próprios Abkhasianos a respeito de sua longevidade, eles disseram-me que vivem tanto por causa de suas maneiras de fazer sexo, trabalhar e comer.

Os Abkhasianos, porque esperam viver muito e com saúde, sabem que é necessário ter elevada disciplina para conservar suas energias, inclusive a energia sexual, ao invés de agarrar tudo que lhes parece doce e disponível no momento. Eles dizem ser a norma que sua vida sexual regular não se inicie antes dos 30 anos para o homem, a idade tradicional do casamento. Era, há al­gum tempo, considerado indigno do homem um marido recém-casado exercer seus direitos sexuais na noite de núpcias. Caso sejam indagados sobre o que é feito para providenciar gratificações que substituam uma necessidade sexual normal antes do casamento, os Abkhasianos sorriem e dizem: "Nada", mas pode-se especular, que eles, como todo mundo, achem substitutos para a sa­tisfação de um sexo saudável e heterossexual. Hoje em dia, al­guns jovens casam-se em torno dos 20 anos em vez de esperar pela idade própria de 30 anos, para consternação dos mais idosos.

Postergar a satisfação pode ser motivo de sorrisos, mas também é a expectativa de um prolongado prazer futuro, talvez até com mais proveito. Uma equipe médica que investigou a vida se­xual dos Abkhasianos concluiu que muitos homens mantêm sua potência sexual além dos 70 anos, e 13,6% das mulheres conti­nuam a menstruar depois dos 55 anos.

Tarba Sit, 102, confiou-me que ele esperou até os 60 anos para se casar porque enquanto ele estava no exército "se divertira bastante". No momento atual, disse ele com alguma tristeza, "Eu tenho desejo por minha mulher, mas não tenho forças". Um de seus parentes teve nove filhos, sendo que seu filho caçula nasceu quando ele tinha 100 anos. Médicos obtiveram seu esperma quando ele tinha 119 anos, em 1.963, e ele ainda mantinha sua libido, bem como a potência sexual. A única ocasião em que a investigação médica achou discrepância nas ida­des, informada pelos Abkhasianos, foi quando alguns homens insistiram ser mais jovens do que realmente eram. Um deles disse ter 95 anos, mas sua filha tinha uma certidão de Batismo provando que ela tinha 81 anos, e outras informações indicavam que ele ti­nha realmente 108 anos. Quando foi confrontado com este dado ele ficou bravo e recusou-se a discuti-lo, pois estava para se casar. Makhti Tarkil, 104 anos, com quem eu falei na vila de Duripsh, disse que a explicação era óbvia tendo em vista um impedimento para o casamento:

"Um homem é um homem até os 100 anos, você sabe ao que me refiro. Depois disso, bem, ele começa a ficar velho".

A Cultura Abkhasiana, estipula um papel secundário e de­pendente para a mulher: Quando jovem, sua aparência é enfati­zada, e quando casa, seu trabalho como dona de casa é sua ta­refa principal. (Como em outros aspectos da vida Abkhasiana, o período que sucedeu a revolução trouxe novas chances e algumas mulheres agora trabalham em variadas profissôes; mas ainda o mais importante é manter a tradição, que ainda tem muita força entre este povo).

Na criação das moças, o maior cuidado é torna-las o mais bonitas possível, de acordo com os parâmetros Abkhasianos. Para afinar a cintura e manter o busto pequeno, elas usam um espartilho em volta de suas cinturas e peitos; o colete é removido definitivamente no dia de sua noite de núpcias.

Sua compleição deve ser esbelta, suas sobrancelhas finas; e porque têm uma testa grande é desejável que seus cabelos sobre as so­brancelhas sejam raspados, e para impedi-los de crescer usa-se emplastos de ervas. Elas devem também ser boas dançarinas.

Virgindade é um requisito extremamente importante para o casamento. Se for provado que a mulher não é mais virgem o noivo tem o direito de levá-la de volta para a casa da família dela e pe­gar de volta os seus presentes de casamento. Ele sempre exer­cita este direito, devolvendo a noiva e anunciando para a fa­mília: "Peguem sua filha morta". E para ele, assim como para todos os homens disponíveis, ela está morta. Na sociedade Abkhasiana, ela fica tão desonrada com tal rejeição que se torna praticamente impossível conseguir um homem para se casar com ela. (Mais tarde, ela pode se casar com um viúvo mais velho ou algum outro homem menos desejável de uma vila distante). Quando é descoberto que a moça não é mais virgem, espera-se que ela nomeie o culpado. A moça usual­mente cita o nome de um homem que tenha morrido recentemente para evitar que sua família queira uma revanche iniciando as­sim uma rixa sangrenta. Para os Abkhasianos casados e sol­teiros modéstia é algo imprescindível no seu comportamento, em todas as ocasiões. Existe entre eles um sentimento de grande desconforto e vergonha sobre qualquer tipo de manifestação se­xual pública, mesmo quando se trata de uma manifestação de afeto. Um ho­mem não deve tocar sua esposa, sentar perto dela, ou mesmo, conversar com ela na presença de pessoas estranhas. As axilas da mulher são consideradas zonas erógenas e nunca ficam expos­tas, exceto para seu marido. A mulher é uma estranha na casa da família do marido, sua presença sempre acarreta uma ameaça de que a lealdade de seu marido pela sua familia possa ser comprometida por sua paixão por ela. Na tradição Abkhasiana, uma mulher não pode nunca mudar seu vestido nem se banhar na presença de sua sogra, e quando o
casal Abkhasiano está sozinho no seu quarto, eles mantêm a voz baixa para que a mãe de seu marido não os escute.

Apesar dessas regras rigorosas, ou porque talvez elas sejam universalmente aceitas, sexo na Abkhasia é considerado uma coisa muito boa e prazeirosa quando estritamente privado. É feito também totalmente sem culpa, não é reprimido ou sublimado, substituído pela paixão pelo trabalho, arte ou misticismo religioso. Não existe mal que deva ser retirado do pensamento. É um prazer que deve ser regulado para o bem da própria saúde, como um bom vinho.
Um Abkhasiano nunca é "Aposentado", um status desconhe­cido no pensamento desse povo. Desde o começo de sua vida até seu fim, o abkhaziano faz o que é capaz de fazer porque ele e os que es­tão à sua volta, consideram o trabalho vital. Ele tem suas próprias necessidades, e tal demanda vai diminuindo com a idade, mas o seu status na comunidade, apesar disso, não aumenta.

Nos nove anos de estudo dos idosos Abkhasianos, Dr. Sichinava fez uma observação detalhada de seus hábitos de trabalho. Entre eles havia um grupo que incluiu 82 homens, a maioria deles trabalhava como camponeses desde os 11 anos e 45 mulheres que, desde        a adolescência, trabalhavam em   casa  e ajudavam       a      tomar conta dos animais da fazenda. Sichinava observou que a carga de trabalho diminuiu consideravelmente entre as idades de 80 e 90 anos para 48 homens, e entre 90 e 100 para o resto. Entre as mulheres, 27 passaram a trabalhar menos entre 80 e 90 anos, e as outras diminuiram o trabalho depois de 90 anos. Alguns homens, pastores, param de seguir a manada que sobe a montanha e as campinas na primavera, e começaram a tomar conta das fazendas de criação de animais, depois dos 90 anos. Os fazendeiros começavam a trabalhar menos a terra, muitos paravam de arar a terra e de levantar cargas muito pesadas, mas continuavam capinando (apesar de ter de se abaixar), e fazem outros serviços. A maioria das mulheres paravam de ajudar no campo e algumas começavam a fazer menos trabalho doméstico. Em vez de servir à família inteira (uma familia Abkhasiana estende-se através de casamentos e pode incluir 50 ou mais pessoas), elas servem somente a si mesmas e às crianças; mas também alimentam as galinhas e fazem tricô.

Dr. Sichinava também observou 21 homens e 7 mulheres com mais de 100 anos e notou que, em média, eles trabalhavam 4 horas por dia na fazenda coletiva, os homens capinando e ajudando com o milho, as mulheres enfileirando folhas de tabaco. Sob o sistema coletivo, membros da comunidade são livres para trabalhar em seus próprios jardins, mas são pagos por cada trabalho que fazem para a coletividade.

O grupo de pessoas com mais de 100 anos, moradores da vila, observados pelo Dr. Sichinava, enquanto trabalhava para a coletividade, mantinha um horário que não chegava a 1/5 do horário do trabalhador jovem. Mas, mantinham seu próprio ritmo e trabalhavam mais calmamente, sem desperdício de movimentos, parando ocasionalmente para descansar. Em contraste, o trabalhador jovem trabalhava rapidamente, mas se mantinha mais tenso e competitivo. A competitividade no trabalho não é inerente à cultura Abkhasiana, mas é encorajada pelo governo soviético visando ao aumento da produção; retratos dos melhores trabalhadores são colocados nos escritórios das vilas coletivas. Ainda é muito cedo para dizer como esta mudança tão fundamental nos hábitos de trabalho afetará a longevidade Abkhasiana.

        Os persistentes Abkhasianos tem seus próprios heróis do trabalho: Kelkiliana        Khesa, uma mulher de 109 anos, na vila de Otapi, foi paga por 49 dias de trabalho (cada dia equivale a 8 horas) durante um verão; Bozba Pash, um homem de 94 anos da mesma comunidade, trabalhou 155 dias em um ano, Minosyan Grigorii de Aragich, sempre é lembrado como um exemplo para os jovens, trabalhou 230 dias em um ano com    90 anos de idade. (A maioria dos americanos, quando se contam as férias e feriados, trabalha entre 240 e 250 dias por ano, sendo que em alguns casos menos de oito horas por dia).

         Tanto os profissionais médicos quanto o povo Abkhasiano, concordam que tais hábitos de trabalho têm uma grande parcela de responsabilidade na sua longevidade.

Os médicos dizem que a maneira como os Abkhasianos trabalham ajuda a manter suas funções orgânicas em ótimo estado. Os Abkhasianos dizem que: "Sem descanso, um homem não pode trabalhar, sem trabalho, o descanso não fará nenhum bem."

Tal atitude, apesar de não ser passível de medidas, pode ser tão importante como o próprio trabalho. Faz parte de um padrão de vida consistente: Quando ainda crianças, fazem o que são capazes de fazer, progressivamente do mais fácil ao mais difícil, e, quando envelhecem, a curva desce, mas é sempre mantida. Os idosos nunca são vistos sentados em cadeiras por longos períodos, passivos como vegetais. Eles fazem o que podem, e enquanto alguns consideram o sistema coletivo de trabalho uma forma de exploração, esse sistema permite que eles funcionem em seus próprios ritmos.

Excesso de alimentação é considerado perigoso na Abkhasia, e pessoas gordas são tratadas como doentes. Quando os idosos vêm um jovem Abkhasiano, que esteja somente um pouco acima do peso, eles perguntam sobre sua saúde. "Um Abkhasiano não pode ficar gordo", dizem eles: "vocés podem imaginar a figura ridicula que farão montados em um cavalo?"  Mas para tristeza dos idosos, os jovens comem muito mais do que seus pais e avós; cavaleiros leves, musculosos e ágeis não são mais necessáros na linha de defesa.

A dieta Abkhasiana, como o resto de sua vida, é estável:  pesquisadores constataram que pessoas com cem anos ou mais comem a mesma comida através de toda sua vida. Mostram poucas preferencias idiossincráticas, e não mudam sua dieta de maneira significativa, quando melhoram seu status econômico. A proteína que ingerem é 23% mais baixa do que a do trabalhador industrial na Abkhasia, e consomem duas vezes mais vitamina C; os trabalhadores industriais têm um índice maior de insuficiência coronária e um nível maior de colesterol no sangue.

Os Abkhasianos comem sem pressa e com decoro. Quando recebem convidados, cada pessoa é brindada, com orgulho, por suas virtudes reais ou imaginárias. Tais refeições podem durar muitas horas, mas ninguém se importa, mesmo porque preferem suas refeições servidas mornas. A comida é cortada em pedaços pequenos, servida em pratos e comida com os dedos. Não importa a ocasião, os Abkhasianos pegam apenas pequenos pedaços de comida e mastigam-nos bem devagar, um hábito que estimula a produção de ptialina e maltase, assegurando uma digestão adequada dos carboidratos os quais formam a base da alimentação. E, tradicionalmente, não existe sobras na Abkhasia; mesmo o pobre dispõe das sobras dando para os animais, e ninguém sequer pensa em servir a uma visita uma comida requentada, mesmo que ela tenha sido feita há apenas         poucas horas.

Mas  alguns jovens,  talvez  influenciados     por costumes ocidentais, consideram tal prátic:a um desperdicio, mas a maioria dos Abkhasianos acha que uma comida feita há mais  de     um    dia    não é saudável. Os     Abkhasianos       comem relativamente pouca carne, talvez uma ou duas vezes por semana, e preferem frango, bife, cabrito e, no inverno, porco. Eles não gostam de peixe e, apesar de serem de fácil acesso, raramente o comem. A carne é sempre fresca e sangrenta e é grelhada ou cozida o minimo necessário para parar de sangrar ou, no caso do frango, até a carne ficar branca. Para os não Abkhasianos ela é dura, mas eles nâo tem problemas com isto.

Nas três refeições, os Abkhasianos comem "abista", uma comida feita com milho amassado e cozida em água sem sal, que toma o lugar do pão. "Abista" é ingerida morna com pedaços de queijo de cabra feito em casa. Eles comem queijo diariamente, e também consomem em média, dois copos de creme-de-leite por dia. Quando comem ovos, o que não é frequente, eles são cozidos ou fritos com pedaços de queijo.

Os outros gêneros de primeira necessidade na alimentação Abkhasiana incluem frutas frescas, especialmente uvas, vegetais frescos, que inclui cebolinhas, tomates, pepinos e repolho,      uma grande variedade de pickles, e "baby lima beans" (tipo de feijâo regional), cozido bem devagar por horas, amassado e servido com molho de cebolas, pimentas, alho, suco de romã e pimenta. Esta mistura quente, ou uma variação dela, é colocada na mesa em uma travessa separada para qualquer um que deseje. Grande quantidade de alho também está sempre à mão.

Apesar de serem os maiores fornecedores de tabaco para a União Soviética, poucos Abkhasianos fumam. Eu conheci uma fumante, uma mulher de mais de 100 anos, que fumava constantemente. Não bebem nem chá, nem café. Mas consomem um produto local, seco, vermelho como vinho de baixo teor alcoólico. Todos bebem, quase sempre em pequenas quantidades, no almoço e no jantar, e os Abkhasianos o chamam de "presente da vida". O açúcar encontra-se ausente de sua alimentação, embora o mel, produto local, seja usado. Dores de dentes são raras.


          
As autoridades médicas soviéticas que examinaram os Abkhasianos e sua alimentação, sentem que ela acrescenta anos em suas vidas: o creme-de-leite e os pickles, e, provavelmente, o vinho, ajudam  a destruir certas bactérias. Indiretamente, isso previniria o aparecimento de arteriosclerose, pensam alguns médicos. Em 1970, uma equipe de médicos soviéticos e o Dr. Samuel Rosen, de Nova York, um famoso cirurgião otorrino, comparou a audição dos Moscovitas e dos Abkhasianos, e concluíram que a alimentação Abkhasiana, pouca gordura saturada, grande quantidade de frutas e vegetais, também contribui para uma melhor audição. O molho "quente", o único item para o qual a maioria dos médicos diria nâo, é, aparentemente, evitado por alguns Abkhasianos.

Embora os Abkhasianos atribuam sua longevidade ao seu trabalho, hábitos alimentares e sexuais, existe outro aspecto de sua cultura que impressiona: o alto grau de integração em suas vidas, o sentido de identidade grupal que dá a cada individuo um sentimento inabalável de segurança pessoal e continuidade e permite aos Abkhasianos adaptarem-se e ainda preservarem-se contra as mudanças de condições impostas pela sociedade em expansão na qual vivem.

Este senso de continuidade em sua vida pessoal e nacional, é o que os antropólogos chamam de sua integração espacial e temporal.

Sua integração espacial baseia-se em sua estrutura familiar. Tal estrutura, literalmente, cerca a vida dos Abkhasianos: regula as relações entre famílias, determina onde eles moram, define a posição da mulher e as regras do casamento. Após séculos da inexistência ou insuficiência de uma autoridade centralizada, o parentesco era o quadro referencial, e continua sendo.

 Parentesco na Abkhasia é um elaborado e complexo conjunto de relações baseados na linhagem paterna. No centro está a família, que se estende através do casamento de seus filhos. Também se incluem todas aquelas famílias que podem ser rastreadas a partir de um único progenitor, e, finalmente, todas aquelas pessoas com o mesmo sobrenome, mesmo quando o progenitor não tenha sido identificado. Como resultado, um Abkhasiano pode ser "parente" de alguns milhares de pessoas, muitas das quais ele não conhece. Eu descobri a permissividade das regras de parentesco quando meu amigo Amar, um Abkhasiano que me acompanhou de Sukhumi para a vila de Duripsh, me apresentou a um grande número de pessoas as quais chamava de irmãos e irmãs. Quando conheci mais de 20 "irmãos" perguntei: "Quantos irmãos e irmãs você tem?" "Nesta vila, 30," ele respondeu. "A contagem Abkhasiana é diferente da russa. Estas pessoas levam o nome de meu pai".

Considerei sua explicação menos sério do que deveria.
Mais tarde, quando manifestei admiração por um disco de um poeta épico Abkhasiano que eu havia escutado na casa de um dos "irmãos" de Amar, este, sem uma palavra, deu-me o disco de presente. "Amar, ele não é seu", eu disse. "Oh é sim. Esta é a casa de meu irmão", ele disse. Quando perguntei para o "irmão", ele disse: "Claro que ele pode dar a você. Ele é meu irmão".

As relações consanguíneas e afins que formam a base da estrutura de parentesco são suplementadas por uma variedade de rituais nas relações, que envolvem obrigações para toda a vida e servem para construir o envolvimento humano do qual os Abkhasianos retiram seu extraordinário senso de segurança. De qualquer modo, não existe estilo alternativo de vida através do qual possam se rebelar; os Abkhasianos estão prontos para absorver outros na sua própria cultura. Durante minha visita, por exemplo, um homem cristão foi chamado para ser padrinho de uma criança maometana; todos dois eram Abkhasianos. Quando eu exprimi minha surpresa, foi dito a mim: "Não tem importância, nós queremos aumentar nosso circulo de parentes."

A integração temporal da vida Abkhasiana é expressa em sua continuidade geral, na ausência de limitações na definição de condições de vida, como por exemplo: "desempregado", "adolescente", "alienado". Os Abkhasianos são amantes da vida, pessoas otimistas, e muito diferentes de muitos idosos "dependentes" nos Estados Unidos, que se sentem um peso para sua família e até para si próprios, eles aproveitam a perspectiva da continuação da vida. Um Abkhasiano de 99 anos, Akhba Suleiman da vila de Achandara, disse a seu médico, "Ainda não é tempo de morrer. Eu sou necessário para os meus filhos, meus netos e este mundo não é tão ruim, a menos que eu não possa mais revolver a terra e esteja ficando difícil subir em árvores".

Os idosos são sempre ativos. "É melhor se movimentar sem nenhum propósito do que ficar parado", eles dizem. Antes do café da manhã, eles andam pelo pátio e pomar da propriedade       tomando    nota de pequenas coisas      que   lhes chamam a atenção. Eles observam cercas e equipamentos que precisam de reparos e checam os animais da família. No café­da-manhã, tendo completado seu estudo matinal, eles relatam o que deve ser feito.

Até a noitinha, o idoso passa o tempo alternando trabalho e repouso. Um homem pode pegar maçãs derrubadas pele vento, então senta-se em um banco, contando estórias ou fazendo brinquedos para seus netos ou bisnetos. Outra atividade, que é largamente praticada pelos idosos, é capinar o quintal, uma larga faixa verde pertencente à propriedade, a qual serve como um centro de atividades para o grupo de parentes. Conserva-la em forma requer considerável quantidade de trabalho, e ainda assim eu nunca vi um quintal que não estivesse bem arrumado e limpo.

Durante o verão, muitos homens idosos passam dois ou três meses no alto das montanhas, morando na cabana dos pastores, ajudando a pastorear ou caçando para si mesmos ou para os pastores. Apesar de seu processo de envelhecimento, muitos são excelentes atiradores, apesar da avançada idade.

Obviamente não estão amedrontados com a perda de sua autoridade, durante sua ausência; o tempo que passam nas montanhas é útil e prazeiroso.

A atitude extraordinária dos Abkhasianos, sentirem-se necessários aos 99 ou 110 anos, não é uma atitude artificial ou auto-protetora; ela é uma expressâo natural, na idade avançada, de um ponto de vista consistente que começa na infância.

A estóica educação de uma criança Abkasiana, na qual os pais e os parentes mais velhos participam, instiga respeito, obediência e resistência. Desde cedo, as crianças participam das tarefas da casa; quando não estão na escola, eles trabalham nos campos ou em casa.

Não existem "fatos da vida" separados para crianças e adultos: Os valores dados às crianças são os mesmos da vida do adulto, e não existe disparidades hipócritas (como em muitas outras sociedades) entre as palavras do adulto e o que fazem.

Desde que o que lhes é ensinado é considerado importante, e o trabalho que lhes é dado é considerado necessário, as crianças nâo são nem preguiçosas e nem rebeldes. A maneira como amadurecem é sem transições bruscas de uma fase da vida para a outra: uma noiva, por exemplo, ficará por um tempo com os parentes do marido, gradualmente se tornando parte do novo clã, antes de mudar para sua casa.

Desde o começo, não existe uma lacuna entre expectativa e experiência. Os Abkasianos esperam uma vida longa e útil antegozam a velhice com uma boa razão: numa cultura onde os altos valores são continuados e cultivados na tradição, os velhos são continuados e cultivados na tradição, os velhos são indispensáveis na sua transmissão. Os velhos presidem os cerimoniais nas ocasiões importantes, mediam disputas, e seus conhecimentos de agricultura são solicitados. Eles se sentem necessários porque, em suas próprias mentes e na de todos os outros, eles realmente o são. Eles são o oposto de fardo; eles são recursos altamente valiosos.

Os próprios Abkhasianos estão obviamente certos em citar seus hábitos alimentares e de trabalho como fatore contribuintes em sua longevidade; na minha opinião, o postergamento, e mais tarde, o prolongamento de sua vida sexual provavelmente não tem nada a ver com ela.

Seu clima é exemplar, o ar (especialmente para um Nova­iorquino) refrescante, sem ser significativamente diferente de outras áreas no mundo, onde a extensão da vida é mais curta. E enquanto algum tipo de seleção genética possa estar trabalhando, não existem informações suficientes para avaliar o fator genético na longevidade Abkhasiana.

Minha própria visão é que os Abkhasianos vivem tanto por causa dos extraordinários fatores culturais que estruturam sua existência: a uniformidade e a certeza de ambos os comportamentos, individual e grupal, o "continuum" inquebrável da continuidade das atividades da vida, os mesmos jogos, o mesmo trabalho, a mesma comida, as mesmas necessidades sociais e pessoais, e o crescente prestígio que vem com o aumento da idade.

Não existe melhor caminho para compreender a importância desses fatores culturais do que considerar, por um momento algumas características prevalentes da sociedade americana. São dadas às crianças tarefas para mante-las ocupadas, mas elas e seus pais sabem que não existe necessidade real no trabalho que realizam; mesmo como adultos, somente uma pequena percentagem de americanos têm o privilégio de sentir que seu trabalho é essencial e importante. Os velhos, quando não simplesmente vegetam, fora das vistas e fora das mentes, mantêm-se ocupadas com "bingo" e jogos de azar eletrônicos. Os americanos seriam versáteis, algumas vezes beneficamente, ao procurar por sinais de permanência, o que indicaria que suas vidas teriam algum sentido.

Será que os americanos podem aprender algo da visão Abkhasiana acerca de povos longevos? Penso que sim.

MEDICANDO-SE A SI MESMOS


Os Abkhasianos praticam uma medicina folclórica bastante elaborada usando mais de 200 plantas nativas para curar uma grande variedade de doenças. Eles aplicam folhas de plantas para cicatrizar ferimentos agudos, pegam ranúnculos para sarampo e rubéola, usam poligonáceas como anti-coagulante e asafetida (também conhecida como "Estrume do diabo") como anti-espasmódico. Quando tudo falha, um médico é chamado e o Abkhasiano idoso é levado para o hospital, mas sempre na expectativa, inclusive a sua própria de que ele irá se recuperar. Eles nunca expressam uma visão fatalista do tipo: "Bem, o que você espera nesta idade?" Doença simplesmente não é considerada normal e natural.


Para quem deseja conhecer belas paisagens da Abkhazia, assim como um pouco de sua história, cultura e hábitos alimentares, recomendamos visitar os links abaixo:


http://www.youtube.com/watch?v=cYGyyuxRPws


http://www.youtube.com/watch?v=WUlSubrJkAU#t=190


http://www.youtube.com/watch?v=DL8SHF6EHQw


Elogio do Envelhecimento - G. Abraham


 
Salvador Dali. Persistence Of Memory, 1931.




             Em 1988, quando de um curso na Universidade de Limoges, França, tivemos a oportunidade de conhecer o Prof. G. Abraham, psiquiatra e psicanalista das Universidades de Genebra e Turim. Um profissional e pesquisador brilhante. Logo adquirimos seu livro Introduction à la Psychogériatrie, que ele escreveu em coautoria com o Prof. I. Simenone, que também conheci neste mesmo evento, publicado pela Ed. Simep, de Paris, em 1984. Apaixonamo-nos por seu texto e, logo após meu retorno ao Brasil, traduzi o capítulo abaixo, em 1990. Desde então, esta brilhante descrição psicológica do envelhecimento (como vemos o nosso próprio envelhecimento) nos acompanha em todos os cursos de psicogeriatria que temos ministrado neste último quarto de século. Trata-se de uma obra fundamental para quem deseja conhecer mais sobre as diversas visões psicológicas do envelhecimento.
  
               Disponibilizamos aqui, para todos aqueles que seguem nosso blog, este texto fundamental em gerontologia e psicogeriatria.



ELOGIO DO ENVELHECIMENTO


G. Abraham (Professor dos Departamentos de Psiquiatria das Universidades de Genebra e Turim).
  
Extraído de Introduction à la Psychogériatrie de I. Simeone e G. Abraham. Ed. Simep, Paris, 1984.

Tradução de Antônio Carlos de Oliveira Corrêa, 1990.


I- Quando Começa o Envelhecimento?

A cerimônia biológica do nascimento é indubitavelmente considerada pelo ser humano como um fato de importância extraordinária. Ela marca o começo da vida, da qual não se conhece bem as razões nem os significados, mas à qual se reconhece uma prenhez pragmática representada, acima de tudo, por aquilo que se convencionou chamar de a consciência do existir. Não é menos certo que o nascimento é descrito, do ponto de vista psicológico, como um fenômeno traumático. Bem mais, se o parto é considerado como um modelo único de todas as manifestações sucessivas da angústia (Rank), a idéia do nascimento traumático é associada paralelamente à convicção de que, beneficiando-se no ventre materno de prerrogativas insubstituíveis, o feto seria, no momento do nascimento, expulso de uma situação de bem-estar, na qual predominam a proteção e a estabilidade.

Excluído do ventre materno, esse feto que se transforma em nascituro, seria condenado à permanência do risco e à instabilidade instituída como regra. Em suma, o nascimento provocaria o desaparecimento da inocência biológica primária e com a angústia que este nascimento comporta, surgiriam o medo, a dor e a incerteza. Se o nascimento é julgado como um traumatismo, é preciso concluir que, desde seu começo, a vida é considerada pelo ser humano com desconfiança, quando ele lhe empresta atributos mais satisfatórios no curso de sua fase potencial, do mesmo modo que isto parece se concretizar no seio materno. Com o medo, a ansiedade, a dor e a incerteza, começaria para nós, nascidos com dificuldade, uma decadência inevitável: é aí que situar-se-ia o início efetivo do envelhecimento. A vida não seria, em definitivo, mais do que um processo de envelhecimento (grifo do tradutor).

A família que concebeu a criança e que a recebe em seu seio apresenta-se como uma entidade que deseja tornar-lhe o aparecimento da vida como um acontecimento satisfatório e positivo. Quer se deseje ou não, acaba-se sempre por encontrar em qualquer um que nasce (especialmente se nasce em nossa família) uma parte de nós mesmos que recomeça a viver. Entretanto, esta família amiga e acolhedora que de uma certa maneira busca prolongar o ventre materno ou atenuar as desagradáveis consequências previstas em seguida ao seu abandono, esta família amiga traz em seu seio inúmeros outros fatores de ansiedade e de perigos para o ser que vem ao mundo; ela impõe um caráter, exigências, regras, separações, competições, frustrações. Compensadora em aparência, as desvantagens inerentes à
individualização do novo ser, esmagam frequentemente este último com o propósito evidente de fazer obstáculo a esta mesma individualização, em favor da predominância das demandas do grupo. Em todos os casos, a tomada de consciência da existência que o novo ser realizará, pouco a pouco permitir-lhe-á igualmente constatar a realidade de um risco fatal de isolamento individualista. O fato de ser si mesmo significará estar separado das coisas e de alguém. A maturação e mesmo o envelhecimento fundam-se sobre esta individualização progressiva, sobre um desprendimento de tudo aquilo que poderia não ser apropriado a si mesmo para buscar nos limites compactos da individualização pessoal esta garantia e esta validade do viver que o nascimento tinha esboçado, mas não definido.

A despeito das tentativas feitas pela família, o grupo, a sociedade, para neutralizar o processo de individualização, de fato, este prossegue seu trabalho de separação, de distanciamento e de egocentrismo. Mergulhado no anonimato do grupo, nosso envelhecimento poderia ser uma espécie de meio termo do envelhecimento global. Então, bem individualizados, nós carregamos sobre nossos ombros nosso envelhecimento pessoal; não podemos nem diluí-lo nem dissimulá-Io. Envelhecer juntos pode fazer crer que se está um pouco menos velho. Na realidade, envelhecer a dois não é mais do que o confronto de envelhecimentos próximos, mas diferentes.

A tomada de consciência do existir vai de par com a iniciação de uma certa vontade de viver. Ela é um pouco similar àquilo que Bergson descreveu como o elan vital. Entretanto, é possível assinalar desde o começo o que se denomina de ambivalência, quer dizer, a coexistência de dois vetores paralelos e opostos que se contradizem alternativamente. Da mesma maneira que ao nascimento, cerimônia biológica inicial da vida, opõe-se a idéia de seu caráter traumático, a vontade de viver, de assumir pessoalmente o desejo e a gestão da existência, é contrariada por uma vontade de recolhimento, de abandono e de morte, que não é unicamente o apanágio de manifestações depressivas. Pelo contrário, esta vontade de morrer descrita pelos filósofos, poetas, psicólogos, parece suficientemente potente para poder compensar todo elan vital. Por outro lado, a noção de um ventre materno suceptível de permitir um estado de graça pré-natal pode coincidir com uma vontade de retornar a ele e, por este fato, a uma forma de morte correspondente ao nirvana. De qualquer maneira é justo dizer, partindo do conhecimento do conjunto do processo de envelhecimento, que este faz parte, tanto da vontade progressiva de viver, como desta vontade obstinada de morrer, não obstante o fato de que se queira atribuir à vida todas as qualidades do que se convencionou chamar o bem e à morte as desta entidade conhecida como sendo o mal. Na realidade, estas atribuições drásticas não parecem exatas. Às vezes a aspiração do elan vital parece aquela de avançar em uma direção paradoxal, em direção a um retorno, à não vida que precedia a concepção. Ela pode se servir das características típicas desta entidade positiva descrita como o bem quando de fato a superabundância da vida com suas exigências, seus desejos, suas dores e seus imperativos pulsionais, pode trazer, justamente, a sensação de que o fenômeno vital em seu conjunto apresenta-se como qualquer coisa de negativo e de maléfico. Reencontra-se com este propósito toda a problemática levantada por Freud em seu conceito do instinto de morte que opõe-se dialeticamente ao instinto da vida.

Mesmo a saúde e aquilo que se convencionou chamar a normalidade podem ser consideradas como uma adaptação coletiva que comporta obrigações e controles que acabam por incomodar-nos. A exuberância, a explosão dos fenômenos vitais, requerem de nossa parte uma tomada de posição constante, uma comprovação constante quanto a seus resultados e a sua validade coletiva. Não é questão jamais de poder abandonar-se tranquilamente, de degustar a vida em solidão tranquila, mas, sobretudo, de confrontar-se sem cessar com regras estabelecidas pelos homens que nos precederam na existência e que parecem pedir-nos contas em relação à maneira pela qual nós utilizamos o ardor vital do qual somos o objeto. Ser si mesmo não permite jamais chegar a uma situação tal que, para alguém, a vida fosse verdadeiramente uma surpresa e uma novidade. Ser si mesmo consiste mais frequentemente em imitar alguma coisa que parece mais conveniente em relação àquilo que é proposto, de maneira que os parâmetros que nós chamamos desenvolvimento e que deveriam estar conforme nossa individualização específica, sejam já indicados como elementos que, de uma parte, apareçam como benéficos e, de outra parte, insiram-se no contexto da evolução como se existisse no ser humano uma espécie de medo de descobrir nas manifestações do desenvolvimento do elan muitos outros sinais de enfraquecimento deste elan e do aparecimento dos fenômenos opostos de degradação. Entretanto, mesmo o conceito de felicidade está submetido a um duplo uso; parece ligado, de um lado, à tendência típica à expansão própria da vida e aos seus impulsos e, de outro, à atenuação de um frenesi vital excessivo e a seu redimensionamento nos limites mais tranquilos e já decadentes.

No conjunto das relações humanas, os elementos compreendidos no termo global de comunicações referem-se a esta ambivalência a respeito da vida. De fato, se é possível entendermos e comunicarmos tanto através de fatores implícitos no desenvolvimento e no ardor da vitalidade, é igualmente possível "a contrario" exprimirmos através daquilo que é comum à degradação e ao envelhecimento; poetas, artistas, linguistas e outros especialistas da comunicação porque servidos, para realizar suas obras de maneira válida, do elan vital fonte de promessas, todas ilusórias, sejam elas de deficiências, carências, desilusões ligadas ao declínio e à perda do élan vital. visto nestes termos o processo involutivo que já nos assistiria desde o começo da vida, não pode ser julgado como um acontecimento puramente acidental que prejudicaria o desenvolvimento biológico com uma incoerência incompreensível. Em compensação, o fenômeno involutivoparece possuir uma dupla textura: aquela do opositor da evolução e do elan vital e aquela comparável a um molde que conteria o elan vital em dimensões de uma maturação adequada e ordenada. O processo involutivo representaria, em suma, um contrapeso indispensável que constituiria em relação à brutalidade explosiva do elan vital, uma possibilidade única de dar-lhe uma significação. Uma vida livre de toda contra-reação involutiva poderia ser desordenada e absurda enquando uma vida condicionada e limitada pelo processo involutivo tomaria uma dimensão aceitável, no seio da qual valores precisos poderiam concentrar-se e definir-se.

Regredir, por exemplo, não seria somente o contrário de evoluir, mas uma forma particular de maturação e de individualização que manifestar-se-ia através do enfraquecimento do empurrão biológico inicial e constituiria, desta forma, a base de uma historicidade individual típica; é como se a matéria bruta das primeiras pulsações da vida se dispersasse para deixar o lugar para motivações cada vez mais pessoais, cada vez mais ligadas aos acontecimentos progressivamente mais significativos de nosso mundo. Consequentemente, somente a involução garantiria a certeza da individualidade e do desenvolvimento efetivo. Somente uma evoluçao sufuciente poderia permitir, de resto, o processo involutivo correspondente. Estar em estado de regressão consistiria em poder dar de maneira apropriada uma forma à impulsividade desordenada que está em nós. Desta forma, a involução é um processo relativo que modela e completa toda forma de desenvolvimento. Todo desenvolvimento ininterrupto não teria mais sentido e, acima de tudo, não teria mais história.

Os controles sociais sobre nossa individualidade, as tentativas incansáveis da sociedade para nos confundir na massa, os modelos pré-fabricados que ela nos propõe continuamente com o objetivo de assegurar a uniformidade, tudo isso poderia igualmente constituir um esforço que tenha por objetivo anular a morte de alguém para reabsorvê-Ia no conjunto, uma tentativa que tenha por objetivo criar a impressão de que o processo involutivo de alguém que não seria mais do que um fato relativo. No grupo, à involução de um corresponde a evolução, pelo menos aparente, do outro; o envelhecimento se reduz a uma cifra cronológica e a um ponto de referência esquemática de tipo biológica. Entretanto, cada um de nós se reconhece muito melhor em sua própria involução do que em seu próprio desenvolvimento. A sociedade prima o desenvolvimento porque este é justamente muito menos pessoal e muito mais assimilável do que aquilo que se chama a "decadência".

De outra parte, pode-se imaginar que o desejo mais caro do homem seja o de prolongar indefinidamente a juventude, de poder construir uma juventude eterna. Na realidade, todas as épocas da vida, compreendida a velhice, estão submetidas a esta aspiração, a esta veleidade de poder durar até o infinito, de ser preservado da usura do tempo. A esperança de poder prolongar a velhice e de conseguir atingir uma juventude eterna, pouco possível, por uma velhice eterna, persiste na imaginação humana. Toda época da vida é relativa às outras épocas. Se nascêssemos já velhos este estado seria provavelmente considerado por nós como a melhor das idades.

Aparentemente nós depreciamos a velhice porque ela nos aparece como um enfraquecimento, uma perda da juventude; bem mais, a perda da juventude aparece-nos como uma doença no sentido completo do termo. Na prática, a juventude é uma época comum a todos, que não tem para todo futuro, a não ser uma não juventude, a qual, de resto, não será prerrogativa de alguém, quer dizer, esta não juventude representará uma espécie de escolha seletiva da natureza.

É o envelhecimento verdadeiramente inato ao homem? Está ele potencialmente presente desde o nascimento tal como um componente da vida ou constitui-se num fato adquirido que aprender-se-ia no curso da existência e que poder-se-ia sempre perfazer e, por que não, prolongar?

A velhice pode ser também concebida, antes, como uma aquisição do que como um destino, um pouco como a identidade individual que se adquire na aparência, imediatamente com dificuldade destacada do ventre materno, mas que, na realidade constitui-se, pouco a pouco, numa verdadeira aprendizagem, no curso da qual aprendemos a sermos nós mesmos. Esta identidade não é, além disto, um fato puramente individual, mas refere-se às contribuições e conceitos coletivos. Na prática, também, o envelhecimento não é jamais um fenômeno isolado: não se envelhece só, não se é velho só, sempre se é velho, repetimos, em relação aos outros ou em relação a um conceito de nosso passado, conceito fundado igualmente em grande parte, sobre bases sociais e coletivas.

            Sob este prisma, envelhece-se sempre ao mesmo tempo que alguém, se é sempre, e acima de tudo, o velho de alguém. É verdadeiro, contudo, que o aspecto comunitário do envelhecimento não constitui mais do que um elemento secundário. Encontra-se mais ligado, com efeito, à comunidade pela aceitação de seu próprio desenvolvimento do que pela aceitação de seu próprio envelhecimento. O desenvolvimento socializa ao passo que o envelhecimento isola, e este isolamento contribui ainda para acentuar a personalidade: o adolescente, por exemplo, busca ecrê. Ele se personaliza através de seus atos, seja através de um reconhecimento social, que em realidade poderia revelar-se uma pseudo-personalização, ao passo que o velho se personaliza por ele mesmo, sem dever recorrer a uma confirmação através dos valores sociais que, sendo coletivos, são enganosos para a individualização. Uma medalha concedida pela sociedade, que deveria trazer uma distinção, assemelha, em verdade, o indivíduo a uma categoria coletiva, à categoria daqueles que merecem. Desta forma, a sociedade pode servir-se de outros fatores de distinção entre seus membros, mas estes fatores não fazem, mais frequentemente, do que acentuar uma espécie de pseudo-identidade.

A título de exemplo, podemos citar as características sexuais. O fato de termos um sexo nos distingue ao mesmo tempo em que nos coloca em uma categoria.

Uma das características importantesque contribui de maneira certa para a construçãoda identidade social é nossa dimensão cronológica. Por sermos nós mesmos, não dispomos unicamentede um aspecto psico-orgânicodado, situado no espaço, mas somos o objeto de um coeficiente cronológicoque nos marca até condicionar na base a espontaneidade o desabrochar de nossa verdadeira pessoa.

Em conclusão, humana não pode ser processo involutivo.O tudo que se apresenta como válido na vida reatado de uma maneira ou de outra ao amor, ele mesmo, não escapa a esta regra. Quando uma pessoa diz a outra que ela o ama, isto implica imediatamente em uma demanda. Quanto tempo ela o amará? Quanto tempo durará o amor?

Isto quer dizer que não somente a cronologia do amor constitui um fator não desprezível neste acontecimento emotivo, mas também que o amor, ele mesmo, inserir-se-á no processo involutivo. De fato, o amor envelhece, ele também, e envelhecer por amor pode significar enfraquecer-se, desabar-se, tornar-se menos interessante, mas isto pode igualmente significar durar, persistir, ir além da ênfase momentânea.

Outras emoções fortes ou fracas participam deste envelhecimento. A agressividade, tanto quanto o amor, está submetida a transformações involutivas. Uma agressividade que dura e que envelhece pode ser significativa, mais tônica ou pode ser uma agressividade tornada crônica que perdeu sua mordacidade e que persiste somente pela força da inércia. Estar sempre agressivo ao envelhecer pode querer dizer conservar um mau caráter ou ter perdido a capacidade de aprender a sabedoria, mas pode ser um sinal, como o sabemos, de conservação da vitalidade. Como se sabe também, a agressividade pode não exteriorizar-se e ser dirigida contra aquele que a engendra. Ela contribuiria, neste caso, para criar um estado depressivo.

Sabemos quanto são frequentes, com efeito, os episódios depressivos nas pessoas idosas. A auto-agressão poderia participar ainda mais d~retamente no envelhecimento; seria mesmo possível perguntar-se se envelhecer não seria uma forma de ataque contra si mesmo, de auto-destruição. No curso do envelhecimento, a agressividade pode ser uma demonstração das capacidades energéticas de uma força residual.

Mas, em suma, o envelhecimento das emoções não significa sempre o seu enfraquecimento, sua degradação: uma involução emotiva pode se constituir em seu aperfeiçoamento, em sua personalização autêntica.

Somos continuamente confrontados com o seguinte paradoxo: na plenitude da vitalidade parecemos ter ideais quase sobrehumanos, que a juventude deveria permitir transformar-se em apoteose incomensurável e nós fazemos projetos como se, fascinados pelo elan vital, quiséssemos construir uma vida especial e extraordinária, que seja totalmente nossa e, ao mesmo tempo, vencer ao ponto de suscitar a inveja e o interesse dos outros. Na realidade, se consideramos bem as coisas, nossa aspiração mais coerente é envelhecer e perscrutar o domínio do envelhecimento, que imaginamos ser quase ilimitado, vivendo, justamente, como uma garantia do sucesso da existência.

Fascinados e seduzidos por múltiplos modelos que nos são propostos e que buscamos construir ou ter prontos para nosso futuro, acabamos por fazer do envelhecimento nosso único paradoxo, continuamos a ser dominados pela ambivalência que se instala face ao envelhecimento e que nos deixa perplexos. O envelhecimento aparece-nos, em outros termos, como o meio de reunir um período de homeostasia, de equilíbrio e de estabilidade, se bem que através de sacrifícios biológicos, de limitações e de abdicações, seria possível, enfim, chegar à impressão de que o tempo pára. Este envelhecimento pode, entretanto, aparecer-nos como um risco contínuo, um estado de crise quase insegurança. permanente, o triunfo da instabilidade e da

II- Função Psicológica do Envelhecimento

Quando falamos de envelhecimento referimo-nos, em geral, a um problema global, ainda que o indivíduo se componha de órgãos diferentes e funções que só podem envelhecer de maneira diferente e variável. Qual é a parte de nós mesmos que envelhece mais lentamente ou mais tard~amente ?

Existem, é certo, células pertencentes a um dado órgão ou sistema que, por toda uma série de circunstâncias que não conhecemos bem, envelhecem de maneira desigual, mais ou menos lentamente.

Além disso, a velhice é um fenômeno visceral celular ou é um fenômeno essencialmente mental? É preciso igualmente considerar que o mundo envelhece no seu conjunto e nós com ele; por este fato o que parece ser a juventude de amanhã é, na realidade, um outro aspecto do envelhecimento do mundo; este será mais velho no futuro do que é hoje e do que foi ontem. Devemos ainda acrescentar que a velhice não é unicamente uma condenação que sofremos, mas também um estado que deve fascinar-nos, porque ele se prepara lentamente em nós. É, em suma, nosso futuro, nosso modo típico de reagir aos acontecimentos.

Observemos bem nosso organismo: o órgão considerado como velho seria menos importante em relação àqueles mais o mais jovens?

O órgão que envelheceu mais ou os órgãos que envelheceram mais poderiam revelar-se, pelo contrário, aqueles que se transformaram em órgãos mais importantes, mais válidos, mais provados, mais seguros, 'mais capazes no momento em que os órgãos ou as funções e os tecidos mais jovens poderiam, em definitivo, ser partes de nosso corpo ainda imaturos, menos seguros, aos quais nosso organismo, no seu conjunto, poderia conceder uma confiança restrita. Além do mais, no domínio do espírito, a idéia de que persiste antes, a idéia tenaz à qual parecemos ligados de uma maneira rígida cristalizada,não é aquela que permaneceu mais jovem, aquela que, de certa forma, não quis mudar, não quis envelhecer? No oposto, a idéia nova, aquela que talvez aceitamos com reticências, com desconfiança, seria, de certa forma, ..alguma coisa que inserimosem nós mais tardiamentee, por isto, uma idéia muito mais velha pelo fato de que ela só pertence agora ao nosso pensamento. Ela poderia ser em todo caso muito mais instável e susceptível de involução, do que uma idéia partida de longe, que amadureceu conosco, que se enfraqueceu e poderia constituir a persistência desta parte jovem de nós mesmos, que jamais desaparece completamente. Se a infância é considerada como um período favorável e fantástico que devemos irremediavelmente perder, o fato de liberar-se, de afastar-se da infância é, entretanto,vivido como um sinal de maturação e de progresso.Se a fraquezada criança, que necessitados cuidados e da proteçãodos adultos,constituium elemento de restrição para a criança mesma, o enfraquecimentoque encontramos na velhice parece redimensionar as pretensões excessivas do adulto maduro em matéria de afirmação e força, favorecendo o apoio sobre os outros, uma verdadeira troca recíproca. Desta forma o filtro do tempo permite as escolhas mais adequadas, as verificações e as contraprovas necessárias a toda experiência existencial válida.

O corpo e o espaço que nos cerca pertence-nos antes do que quando eles eram prova da espacialidade incondicionada da juventude com suas pretensões possessivas ilimitadas. Se, em certo sentido, o escoamento da idade pode constituir um constrangimento cronobiológico ao qual não podemos nos subtrair, em outro sentido ele é o caminho importante e necessário ao nosso aperfeiçoamento, ao nosso desenvolvimento psíquico e ao alargamento de nosso horizonte existencial. De toda maneira a involução não pode retirar-nos o tempo que possuímos, a quantidade de experiência adquirida e a certeza do vivido.

O passado é doravante nosso "ser" bem antes que o incerto futuro. O que nos precedeu só faz submeter tudo que nos chega a uma espécie de exame ou, de um certo ponto de vista, ele representa a demonstração possível, a explicação eficaz e efetiva de nosso desenvolvimento. Por conseguinte, a involução significa igualmente conservação,maturação, intensificaçãoe reforço ao mesmo tempo que pode ser enfraquecimento, lentificação.

Envelhecer quer dizer contemplar-se em um espelho, dar uma parada. Involuir acarreta recomeçar em uma outra direção, a repetir-se de maneira econômica.

O sofrimento é menos absurdo, a doença mais familiar, a surpresa menos surpreendente. As emoções são atenuadas pelo uso, as afetos são liberadas do desejo de conquista. A coragem tornase coragem de ser e o medo, sobretudo, um medo de si mesmo.

Muitas coisas tomam seu tempo na velhice entre as quais a sexualidade; a título de exemplo, a ereção faz-se mais lentamente no homem e o desejo de concluir o ato sexual é menos imperioso. Na velhice a vida está muito mais próxima de uma perspectiva panorâmica do sentido da escolha e o sucesso de nossa vida inteira. 

Desenvolver-se é uma maneira de esperar, de preparar, envelhecer é, em compensação, uma maneira de se preocupar. Sentimos nosso desenvolvimento como um dever da natureza em relação a nós. Envelhecer é, por outro lado, um presente que não merecemos, é agradável porque ele não nos é devido. É envelhecendo que o ser humano atinge seu mais alto grau de humanização. Não querer envelhecer é recusar o conjunto do que temos sido capazes de fazer e de obter. Pode-se pensar que a criança é ainda preservada da contaminação sócio-cultural, ao passo que o velho seria a vítima desta contaminação. É, entretanto, possível que o velho caminhe, estando pouco a pouco liberado das quotas e das diferentes influências culturais. Ele teria resistido a esta poluição cultural eventual, aceitando-a quando podia julgá-Ia útil e significativa e rejeitando praticamente o resto.

No simbolismo habitual tudo que vem primeiro goza de uma grande vantagem em relação ao que se segue. Neste sentido a infância é melhor do que a juventude, a juventude do que a maturidade e a maturidade do que a velhice. Entretanto, busca-se frequentemente revalorizar aquilo que se segue, busca-se salvá- 10, prometendo em relação àquilo que "vem após", vantagens das quais não se dispõe ainda e encoranjando as pessoas a renunciar, a sacrificar aquilo que vem primeiro para melhor saborear o que vem após. Mas o que "vem após", e que é sempre identificado com o previsível, implica inaceitavelmente na perda do que está em primeiro. O primeiro corresponde estruturalmente ao ser nele mesmo, a presença vital, enquanto aquilo que se segue, aquilo que "vem após" corresponde naturalmente ao futuro. E no ser, em sua existência imediata, que parece se situar a essência profunda da vida, ao passo que o futuro não é mais do que um "a se fazer" ou um "ser já feito" sobre a base daquilo que fomos precedentemente.

De sorte que se a experiência nos enriquece de elementos novos, se ela nos dá, pelo menos, a impressão da mudança, ela aliena, contudo, aquilo que a precede e, bem entendido, a enfraquece. A glorificação humana e social da inocência não se refere somente à falta de conhecimento, à inexperiência e à candura, ela refere-se igualmente a este defeito de contaminação em relação ao futuro e à modificação que assusta e engendra a noção de uma vida que se perde em se construindo. Todavia, a estrutura da existência em seu estágio inicial não é ainda provada nem assegurada quando a estrutura efetiva torna-se aquela que engaja-se no vivido e na maneira na qual este último se transforma: a estrutura do começo é potencial e, de certa forma, ilusória, a estrutura autêntica e individualizada só pode ser aquela que foi submetida à confrontação existencial. Por isto a posse do elan biológico primário não pode ser mantida sob pena de inutilidade e de absurdo: ela deve dialogar com a aquisição progressiva da experiência vital, aquisição que é perpetuamente colocada em questão pelo futuro, o estado estático é pior do que a morte, porque é a negação da vida. O tempo, este grande protagonista da existência, pode, por outro lado, ser entrevisto de maneiras muito diversas. Pode ser concebido como uma espécie de lugar onde se jogam os acontecimentos e onde se movem os seres. Este conceito é, em parte, sobreposto à noção de duração, uma espécie de local vital. O tempo pode ser igualmente visto como um simples coeficiente de transformação: as coisas modificam-se por causa do tempo e necessitam do tempo para se transformar. Mas o tempo participa também respectivamente dos conceitos de empobrecimento e enriquecimento que já temos considerado. Enfim, o tempo participa igualmente da impressão da identidade individual posto que cada um de nós possui, por sua própria identificação, esta-coordenação temporal que a qualifica e a orienta.

A partir daí onde se encontra a verdadeira força do ser humano? Do lado do impulso inicial que impõe a vida ou do lado do desenvolvimento e da atualização desta mesma vida? A decadência que seria ligada ao envelhecimento significaria então a decadência biológica ou a decadência do ser humano? O ser humano agarra-se a elementos que ele considera rentáveis, ele espera a conservação ininterrupta do elan inicial que ele crê frequentemente ter perdido. De outro lado, ele sabe que tudo aquilo que é considerado como rentável pode ser ilusório, o verdadeiro rendimento existencial pode encontrar-se, em compensação, em fatores julgados decadentes ou marginais. A satisfação pode representar um elemento de parada, de bloqueio, quando a abertura e a esperança são frequentemente ligadas a uma insatisfação relativa.

No fenômeno do envelhecimento percebe-se, além disso, a presença de uma certa irracionalidade associando-se ao absurdo de um vivido que parece progressivamente desprovido de seus utensílios mais válidos; esta irracionalidade pode inserir-se muito mais do que a racional idade na fervura desordenada que é um dos aspectos típicos da existência. Enfim, no envelhecimento situa-se a surpresa permanente de "sobreviver", surpresa relativamente fraca ou considerada como impossível no curso da juventude onde, ao contrário, a vida é sentida como um direito, como um fenômeno lógico. A estes fatores acrescenta-se a atitude descrita como sendo a sabedoria que força o ser humano a dar-se um sentido. Com a velhice, a realidade sofre inevitavelmente uma usura e um declínio funcional. Entretanto, sabemos que esta realidade que nos aparece tão sensata e incontestável; está submetida a interpretações subjetivas e a um relativismo constante. Por outro lado, o imaginário, a vida intrapsíquica do indivíduo deveria sofrer, em teoria, justamente por causa deste declínip da realidade, uma intensificação, uma espécie de superabundância compensadora. Em vez disto, a imaginação parece limitar-se, empobrecer-se no curso do envelhecimento. Não se sabe se isto é devido a uma falta de esforço destinado a fazer frutificar sua própria vida imaginária ou se esta limitação da imaginação é só uma impressão vista do exterior. A imaginação das pessoas idosas, embora reduzida, poderia encerrar uma força compensadora e uma intensidade emocional proporcionalmente mais elevadas em relação a estas fantasias em aparências mais variadas e mais abundantes dos jovens.

Uma possibilidade diferente de interpretar a realidade e sua confrontação com o imaginário pode aplicar-se com respeito à morte. Esta é geralmente encarada como uma tragédia, como a destruição desta existência que, de presente incompreensível, torna-se pouco a pouco para o homem seu próprio ser. Estando habituado a viver, o ser humano está sempre mais preparado para confrontar a existência: tomando consciência da presença da morte, depois de muito pouco tempo de vida, ele deve preparar-se já para a perda desta e, por conseguinte, para a morte. A morte, todavia, é um fenômeno que nos empurra para encontrar uma significação para a vida. Mesmo se, caminhando na existência, nós nos extraviamos e nos deixamos distrair por perspectivas menores julgadas práticas, o aparecimento da morte, quando ela se desenha no horizonte, faz-nos voltar para uma obrigação intrínseca, incita-nos a dar à nossa vida um valor mais profundo e fundamental do que aqueles que nos animaram na existência cotidiana.

É na esteira desta ambivalência e desta ambigüidade que buscamos descobrir e provar, através de múltiplos aspectos humanos, a antítese na qual situa-se a diversidade entre o que poderia chamar-se o bom e o mau velho.

O velho é considerado bom, o que quer dizer aceitável, quando não incomoda, quando é simpático e bem sucedido, quando ele manifesta algumas características de sabedoria, mesmo se elas não sejam sempre levadas a sério.

O velho bom permite-nos tranquilizarmo-nos porque ele se nos apresenta como uma pessoa que soube fazer frutificar a vida e tirar dela uma experiência que nos é também reservada. Esta sabedoria é frequentemente um equivalente de tranquilidade, de renúncia às paixões, uma espécie de anestesia e de autolimitação.

Para ser bom, o velho não deve somente ser sábio, deve igualmente ser sadio. Ele não deve nos preocupar com doenças, suas insuficiências brutais e imprevisíveis para desenvolvimento.

Ele deve saber manter-se ágil e autônomo. Deve saber seduzir-nos com sua capacidade de sobreviver e sua longevidade eventual. Tudo isto, com efeito, nos fascina e nos faz esperar amanhãs interessantes.

Em compensação, o mau velho é, em geral, um velho doente, um velho que nos culpabiliza, nos ameaça com uma assistência permanente ou com uma morte próxima. Além do mais, é um velho, a bem do respeito, incompreensível, posto que ele pode estar ferido pela tristeza, podendo, de repente, envolver-nos, angustiar-nos sem cessar, inquietar-nos profundamente.

É um velho fraco, que tem necessidade de apoio, um velho frágil que, já existindo um pouco no interior de nós mesmos, retirar-nos-á toda segurança referente ao amanhã. Entretanto, este velho mau pode aparecer-nos também como um velho diabólico, que não sabe desvencilhar-se das paixões, das mudanças, que continua competitivo e que pode, no fim das contas, tornar-se perverso e assaz egoísta; um velho insaciável sob todos os pontos de vista.

Por causa disto ele é um velho perigoso e insuportável, que não realizou em momento algum o processo de purificação que a velhice tinha deixado entrever para ele e que não parece ter renunciado a toda uma série de promessas que a vida parece não ter inteiramente cuidado. Um velho que não sabe suficientemente esquecer ou que não quer se lembrar o suficiente.

Tudo isto nos demonstra que uma parte do que se chama ou se descreve como sendo a velhice precisa ser descoberta, ser aclarada com uma luz mais apropriada e, de certa forma, ser inventada. Ela precisa igualmente ser valorizada à maneira de uma terra até então abandonada e incerta, que poderia revelar-se de uma plenitude insuspeitável. A velhice poderia mesmo assumir o papel da idade mais importante da vida.

Para retomar nossa divisão (nossa antítese hipotética entre bons e maus velhos) podemos perguntar-mo-nos se são, verdadeiramente os bons velhos, tal qual os concebemos e os maus velhos, os mais estéreis, os adaptados demais, os mais artificiais. E, no oposto, se não seriam os maus velhos os mais incompreendidos ? De fato, eles parecem os mais explosivos, os mais recalcitrantes em deixar-se fechar num esquema idealizado e estereotipado, em uma casa de velhos, um gueto, uma categoria bem estandardizada. Devemos nos perguntar desde então se devemos procurar envelhecer segundo uma orientação pré estabelecida, seguindo um sulco consagrado pela tradição ou deixarmo-nos envelhecer saboreando o envelhecimento a cada instante, com seus sobressaltos, seus incômodos e suas espantosas incoerências; um envelhecimento que advém, em parte, como queremos e porque o queremos, um envelhecimento que se descreve bem mais através de nossa personalidade do que pela contemplação de nossas lembranças e nossa capacidade de produção passada.

Não somos somente o nosso passado, aquilo que fizemos ou fomos, somos também, acima de tudo, nosso envelhecimento; para que ele seja nosso devemos nos esforçar em não nos limitar em suportá-lo como um peso que nos amassa e nos oprime. O velho verdadeiramente bom é provavelmente aquele mais bem sucedido em criar, ele mesmo, seu próprio envelhecimento.

No fundo não existe velhice normal.

O envelhecimento é a "doença" do ser, mas no sentido de dever colocar-se em causa, de sair das pretenções gratuitas, de uma progressão de sentido único. O envelhecimento é a única maneira de existir completamente; a única maneira, então, de ser "doente" de maneira séria e útil. Quanto as outras doenças, aquelas que são acidentais, freqüentemente a velhice as atenua, como as neuroses, as psicoses ou as lentifica, como o câncer.

Os velhos que não envelhecem, que permanecem iguais a eles mesmos, parecem perder sua verdadeira identidade, sua verdadeira personalidade.

Os velhos que se assemelham demais parecem ter recusado o aspecto marcante da individualidade que impregna normalmente o processo involutivo. Estes são, em suma, os velhos que traíram seu envelhecimento.

O rosto, parte mais individualizada do ser humano, não envelhece antes, digamos, do que o resto do corpo? De fato, não se pode negar que um envelhecimento que soube conquistar seu próprio envelhecimento, que tem, por assim dizer, escolhido, adquire sobre seu rosto uma forma particular de beleza ou, se preferirmos, um certo desabrochar em relação ao qual a beleza da juventude não é mais do que um esboço preparatório, um esboço ainda desprovido de originalidade.


Referência
Abraham G., Andreoli A., Simeone I., Valente Torre L. Vecchi
buoni g vecchi cattivi. Introduzione ad una gerontoloqia clínica.

Rome: CIC, 1981 (traduzido para o "francês por Armine Scheler).