A
História das Neurociências e a Psiquiatria Mineira
Antônio Carlos
de Oliveira Corrêa[*]
“O corpo não pode determinar que
a mente pense; nem a mente determinar que o corpo fique em movimento ou em
repouso, ou em qualquer outro estado, pela simples razão de que a decisão da
mente e o desejo e a determinação do corpo (...) são uma única coisa”. (Baruch
Spinoza. Ética, Parte II, Proposição
XIII).
Distinguido
que fui com a solicitação pela Diretoria do Centro de Estudos Galba Velloso
(CEGV) para a redação de um texto a ser publicado na Revista do CEGV, quando da
comemoração dos 50 anos de fundação desta entidade, encarei o desafio. Debrucei-me, com empenho, sobre
esta tarefa de grande responsabilidade e espero corresponder, um pouco que seja, à confiança em mim depositada. Coube-me
o tema da neurociência e a
clínica, num recorte histórico sobre as inovações teóricas e suas aplicações no
campo da clínica psiquiátrica, em Minas Gerais no último meio século. Tarefa
nada fácil, dada a vastidão do tema, sua importância histórica, o peso do
compromisso com a reprodução fiel na enunciação de conceitos e paradigmas que
foram mudando no decorrer do tempo e pelo espaço disponível nas páginas da
Revista.
Quando o CEGV foi fundado, em 1963, a
psiquiatria mundial passava por profundas transformações que se refletiam na
prática dos profissionais em Minas Gerais.[1]
Não que essas transformações tenham se encerrado nesse período, pois a
psiquiatria continua passando por grandes avanços, cada vez mais
aceleradamente, nas três últimas décadas. É que, no início da década de 1960,
havia uma grande diversidade de teorias e escolas psiquiátricas, umas muito
divergentes das outras, com certa polarização entre algumas correntes: as organicistas clássicas (Kraepelin,
Bleuler, Kretschmer, Clerambault e outros), as organodinamistas, sob a liderança de Henry Ey (1900-1977), na França,
e as psicogenéticas, corrente
iniciada, em 1936, pelo dinamarquês August Wimmer (1872-1937).[2]
[3]
Havia pouco em comum entre os “psicopatologistas” alemães, os “psicodinamistas”
norte-americanos e os “psiquiatras sociais” britânicos.[4]
Decorrera pouco mais de uma década da grande revolução na psiquiatria mundial
com a descoberta da ação psicofarmacológica da clorpromazina nos grandes
transtornos psiquiátricos, particularmente na esquizofrenia e na psicose
maníaco-depressiva. A clorpromazina foi sintetizada por Paul Champentier, na
França, em 1950. No ano seguinte, o cirurgião francês Henri Laborit a utilizou,
com sucesso, como pré-anestésico. A descoberta da ação neuroléptica da
clorpromazina foi proporcionada por dois grandes psiquiatras franceses, Jean
Delay (1907-1987) e Pierre Deniker (1917-1998), em 1952, hoje devidamente
entronizados no panteão da glória da história da psiquiatria mundial. Até
então, os pacientes psiquiátricos, quase sem exceção, quando hospitalizados,
ficavam em instituições por tempo excessivamente longo, em função da carência
de métodos terapêuticos realmente eficazes no alívio de seu atroz sofrimento. O
mundo dispunha, até 1952, de poucas drogas psicotrópicas com nítida ação benéfica
sobre o Sistema Nervoso Central (SNC), alterado por transtornos emocionais e
comportamentais de monta. Dentre os medicamentos disponíveis, antes da década
de 1950, podem ser citados o hidrato de cloral, os brometos, os barbitúricos,
os opióides (ópio, morfina, heroína), as anfetaminas, a escopolamina (uma droga
anticolinérgica) e derivados da rauwolfia
serpentina, uma planta de cujo extrato se obtinha uma substância de ação anti-hipertensiva,
antipsicótica e sedativa. Destacavam-se também os tratamentos baseados em
métodos biológicos, como a insulinoterapia, a cardiazolterapia, a sonoterapia
de Klaesi e o eletrochoque, todos, então, muito em voga.
Durante toda a década de 1960, no ambiente
clínico-acadêmico do Hospital Galba Velloso (HGV) havia uma forte presença das
grandes correntes teóricas da psiquiatria mundial, tais como: a- a psicopatologia
fenomenológica de Karl Jaspers (1883-1869) [5],
dos conceitos clínico-empíricos de Emil Kraepelin (1856-1926) e Kurt Schneider
(1887-1967)[6],
todos eles expoentes oriundos da Universidade de Heidelberg, na Alemanha; b- a
clínica psiquiátrica de Eugen Bleuler (1857-1939) e de Manfred Bleuler
(1903-1994) [7],
da Burghölzli Klinik, de Zürick, que recebera grande influência da psicanálise
freudiana[8];
c- do organodinamismo francês de Henry Ey[9],
no qual se procurava também uma síntese do que havia de mais atualizado na
psiquiatria clássica com os conceitos freudianos; d- a escola espanhola de
Juan-José Lopez Ibor (1908-1991)[10],
Manuel Cabaleiro Goás (1918-1977)[11]
e Francisco Alonso Fernandez (1924- ), de forte influência fenomenológica[12];
e- da escola organicista centro-européia de Karl Kleist (1879-1960) e de Wilhelm
Mayer-Gross (1889-1961); f- pela escola psicodinâmica norte-americana, que
recebera forte influência da medicina psicossomática de Adolf Meyer (1866-1850)
e da psicanálise culturalista de William Alanson White (1870-1934), Frieda
Fromm-Reichman (1889-1957), Karen Horney (1885-1952), Harry Stack Sullivan
(1892-1949), Clara Thompson (1893-1958), Erich Fromm (1900-1980) e Erik Erikson
(1902-1994)[13]; g- a influência da
psiquiatria social de Maxwell Jones (1907-1990), bem antes da chegada até nós
das teorias antipsiquiátricas do norte-americano Thomas Zsaz (1920-2012), do
escocês Ronald Laing (1927-1989) e do sul-africano/britânico David Cooper (1931-1986).
As idéias de Maxwell Jones sobre comunidade terapêutica receberam ampla
acolhida, tendo sido utilizadas técnicas psicodramáticas e sociodramáticas em certos
pacientes de longa permanência em instituição, particularmente psicóticos.[14]
Também exerceram grande influência, no período, a teoria e os métodos do
psiquiatra e psicanalista argentino, com grande experiência em comunidade
terapêutica, Emílio Rodrigué (1923-2008).[15]
Os métodos de psicodrama de Jacob Moreno (1889-1974), logo também tiveram
aceitação e se popularizaram em ambiente de comunidade terapêutica. Essas
correntes aqui apontadas também exerceram grande influência na psiquiatria
praticada em outras instituições e hospitais mineiros.[16]
Sob a direção de Jorge Paprocki (1926- ), o HGV
fervilhava com todas essas ideias que formaram uma numerosa geração de
psiquiatras, muitos ainda bastante atuantes no ensino, na pesquisa e na
clínica. Paprocki, antes de assumir a diretoria do HGV, exercera a clínica em
Juiz de Fora e Belo Horizonte, onde se destacara por suas pesquisas na área de
terapêuticas biológicas (eletrochoque sob anestesia e curare) e na psicofarmacologia,
área das neurociências que então engatinhavam. Muitas pesquisas com
psicofármacos foram realizadas no HGV no período 1963-1971, considerado um
período de ouro na história da psiquiatria mineira. Paprocki trouxe uma
metodologia de investigação e pesquisas mais apuradas, baseadas na redução
fenomenológica e psicopatológica jasperianas e com a utilização de escalas de
avaliação e mensuração, então uma novidade em nosso meio acadêmico e clínico.[17]
Além de sua formação dentro dos princípios da psiquiatria fenomenológica alemã
clássica e no organodinamismo de Ey, Paprocki trouxe também para o HGV uma
forte influência da psiquiatria psicogenética, na medida em que introduziu no
hospital técnicas baseadas na psicanálise da escola de Igor Caruso, então
chamada de Psicologia Profunda.
A partir de 1963, Paprocki, ao lado de diversos
outros psiquiatras, clínicos e psicólogos, como Djalma
Teixeira de Oliveira, Jarbas Moacir Portela, Elba Duque, Eunice Rangel, Célio
Garcia, Antônio Ribeiro e Elias Hadad, submetiam-se a análise com Malomar Lund
Edelwaiss (1917-2010). Malomar, sacerdote e profundo interessado por
psicanálise, oriundo de Pelotas (RS), havia se submetido a análise com Igor
Caruso (1914-1981), em Viena, na primeira metade da década de 1950. Igor
Caruso, ítalo-russo, fora analisado por August Aichhorn, um discípulo de Sigmund
Freud, em 1943. Entre 1944 e 1945, Caruso submeteu-se a análise com Viktor von
Gebsattel, um expoente do pensamento psiquiátrico e psicanalítico e orientação
católica.[18]
Tanto Aichhorn como von Gebsattel haviam também sido submetidos a análise com
Paul Federn, discípulo da primeira geração de Freud. Logo após a II Guerra
Mundial (1947), Caruso fundou uma sociedade psicanalítica em Viena à qual
denominou de Círculo Vienense de Psicologia Profunda, uma dissidência da
International Psychoanalitic Society (IPA). Esta sociedade abrigava associados
de variadas orientações teóricas como: psicologia analítica e existencial,
psicologia genética, filosofia, etologia, antropologia e outras áreas do
pensamento da época. Inicialmente, havia uma estreita interlocução com grupos
cristãos. Posteriormente, afastou-se deles e se aproximou de teóricos ligados à
Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Erich Fromm) e, em
seguida, de Herbert Marcuse, Ernest
Bloch, Norman Brown, Jean Paul Sartre. Por consequência, manteve contato também
com autores marxistas (Marx, Engels, Lukács, Reich, Gabel, Gorz e outros).18
19 20 33
Seu discípulo Malomar, ao lado de Francisco Vidal,
Gerda Kronfeld e Sigfried Kronfeld, fundaram o Círculo Brasileiro de Psicologia
Profunda, em 1956, em Pelotas. Mesmo tendo a oportunidade de submeter-se à
formação analítica em Buenos Aires, cidade próxima ao Rio Grande do Sul, onde
se sobressaíam psicanalistas como Pichón-Rivière, Marie Langer e Angel Garma, o
grupo aderiu às ideias de Caruso por este fazer a interlocução da psicanálise
com idéias existencialistas e católicas.[19] Algum
tempo depois, a entidade aproximou-se mais de Freud, sem abandonar
completamente suas influências anteriores, e mudou seu nome para Círculo
Brasileiro de Psicanálise. Quando veio para Minas, em 1963, Malomar fundou o
Círculo Mineiro de Psicologia Profunda, que, por sua vez, mudou de nome, em
1970, quando passou a se denominar Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).[20]
O CPMG exerceu uma influência marcante na
psiquiatria mineira, notadamente nas décadas de 1970 e 80. Distinto, porém com
relações próximas da escola psicodinâmica norte-americana, mantinha uma visão
freudiana bastante psicogenética e sociogenética dos transtornos psiquiátricos.[21] Alguns
de seus membros se aprofundaram em estudos e publicações sobre psicologia
social e psiquiatria social. Jarbas Moacir Portela desenvolveu estudos sobre a
relação psiquiatra-paciente em três distintos ambientes: a clínica privada, a
instituição pública de previdência social e o hospital público para atendimento
gratuito de pacientes de baixa renda. Constatou aí um diferencial de atitudes e
papéis, bem como de propostas terapêuticas, por parte do médico, assim como
distintas posturas dos pacientes em cada uma dessas situações (no primeiro
caso, constatou um processo de equilíbrio social, cultural e empatia através de
identificações projetivas e introjetivas, na clínica privada; no segundo caso,
constatou uma relação impessoal, fria, sem empatia, na qual prevalecia o
exercício dos direitos dos pacientes frente à instituição; no terceiro caso, constatou
uma atitude de passividade, submissão e gratidão dos pacientes pela assistência
recebida), revelando, em nosso meio, um dos primeiros estudos de psiquiatria
transcultural.[22]
Célio Garcia, por sua vez, aprofundou-se em estudos psicossociais, já com forte
influência de Roger Bastide, Max Pagès, Michel Foucault, Ronald Laing e outros,
antecipando-se, ainda na década de 1960, aos movimentos de psiquiatria social e
antipsiquiatria que se destacaram nas duas décadas seguintes.[23]
Jorge Paprocki dedicou-se à pesquisa em
psicofarmacologia durante mais de cinco décadas. Em decorrência de seu trabalho
e de alguns outros psiquiatras, os conhecimentos das neurociências começaram a
chegar a Minas Gerais. Anteriormente, a utilização dos psicofármacos na clínica
psiquiátrica era baseada unicamente em critérios empíricos. Ainda na segunda
metade da década de 1960, antes e após a criação da Residência de Psiquiatria
no HGV, em associação à Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, algumas
das descobertas pioneiras em psicofarmacologia começaram a ser estudadas e
debatidas nos meios clínicos, acadêmicos e hospitalares mineiros, com
participação ativa dos membros do CEGV. Vejamos alguns dos marcos históricos
paradigmáticos das grandes mudanças pelas quais passava a psiquiatria mundial
e, por consequência, a psiquiatria mineira.
Os transtornos do humor sempre estiveram entre as
mais frequentes e difundidas patologias emocionais. Poucos transtornos são mais
incapacitantes e levam a mais sofrimento ao ser humano do que eles. O avanço em
seus tratamentos, seja com medicamentos para combater a depressão ou a mania,
seja com a utilização dos estabilizadores do humor, representou um dos mais
revolucionários métodos de enfrentamento das doenças na história da medicina.
Na década de 1950, considerada a “década de ouro” da psicofarmacologia, já se
sabia que extratos das raízes da planta Rauwolfia
serpentina, conhecida da Humanidade desde a Antiguidade, eram capazes de
tratar alguns transtornos médicos, dentre eles a hipertensão arterial, as
psicoses, dentre elas a esquizofrenia, a agitação, a ansiedade e a insônia. Dentre
as substâncias encontradas nesta planta está o alcalóide reserpina. Durante esta década, a reserpina foi utilizada no
tratamento da esquizofrenia, notadamente por psiquiatras germânicos.
Entretanto, ela era responsável por um efeito colateral dos mais importantes, o
humor depressivo, com relato até de casos de suicídio. A ligação da reserpina
com a depressão era desconhecida até finais da década de 1950. Nesses anos, após
sucessivas descobertas relacionadas à neuroquímica e à farmacologia, cientistas
norte-americanos e suíços confirmaram que a reserpina e outros compostos
produzem a liberação de serotonina no cérebro, plaquetas e intestino. Esta
substância já era conhecida no organismo desde a década de 1910. Liberada a
serotonina, uma das consequências imediatas é a sua destruição por determinadas
enzimas o que acarretava a redução de seus estoques corporais, particularmente
no cérebro. Isso fez levantar imediatamente a hipótese de que a redução de
serotonina estivesse vinculada à depressão, mas faltavam maiores evidências
para tal postulação.[24]
Em 1957, duas grandes descobertas levaram a um
grande avanço nas terapêuticas psiquiátricas da depressão. Ao pesquisar a ação
de uma substância tuberculostática derivada da isoniazida, a iproniazida, o
cientista norte-americano Nathan Kline (1916-1983), partindo de pesquisas de outros
cientistas, verificou que ela apresentava um nítido poder antidepressivo em
pacientes tuberculosos deprimidos. Tanto a isoniazida,
quanto a iproniazida, mais esta que
aquela, eram conhecidas como inibidoras de uma enzima denominada monoaminoxidase
(MAO). Cogitou-se que esta enzima pudesse estar vinculada à depleção cerebral
de serotonina, exercendo papel semelhante ao da reserpina. Teria, então, a iproniazida, substância inibidora
da MAO (IMAO), uma ação antidepressiva. Em 1952, o cientista teuto-suíço Robert
Domenjoz (1908-2000), diretor de farmacologia do Laboratório Geigy, posteriormente,
diretor do Instituto de Farmacologia da Universidade de Bonn, ficou
impressionado com as pesquisas de cientistas do laboratório francês
Rhône-Poulenc, em colaboração com cientistas do Instituto Pasteur, em Paris, com
substâncias de ação anti-histamínica, que apresentavam nítida ação sedativa e
hipnótica. Dedicou-se, então a pesquisar novas substâncias derivadas da iminodibenzila, descoberta pelos
químicos alemães Thiele e Holzinger em 1898, cuja molécula apresenta
similaridades com a da fenotiazina, no intuito de avaliar seu potencial como
droga antipsicótica. Os auxiliares de Domenjoz chegaram a um produto chamado,
então, por G-22150, com nítida ação hipnótica e sedativa. Descobriu-se que, ao
se alterar os radicais laterais do núcleo de três anéis benzênicos desta
molécula da iminodibenzila, novos produtos eram obtidos com ações diferentes,
incluindo ativação de funções do SNC em animais de laboratório. Um desses novos
derivados, o G-22355, com uma cadeia lateral idêntica à da clorpromazina, foi
entregue por Domenjoz ao cientista suíço Roland Kuhn (1912-2005), do
laboratório Geigy, para investigações mais aprofundadas, em 1956. Ao pesquisar
este derivado da iminodibenzila no tratamento de pacientes esquizofrênicos
deprimidos, Kuhn descobriu importantes efeitos na melhora dos seus sintomas do
humor, decorrentes de certa ação anti-reserpínica. O nome da nova droga: imipramina. No ano da graça de 1957, estava
descoberta uma nova linhagem de medicamentos antidepressivos, os tricíclicos.
Assim como ocorrera com a clorpromazina, a imipramina foi submetida a uma
enorme quantidade de estudos, com milhares de publicações, fato que a tornou,
quase que de imediato, uma droga universalmente conhecida. Um fato curioso
nesta história: Roland Kuhn foi um profissional que mantinha fortes vínculos
com a psicanálise, apesar de ser considerado um dos pioneiros da nova geração
de “psiquiatras biológicos”, em função de seus vastos conhecimentos de química
orgânica e bioquímica, notadamente após seu ingresso na Geigy, em 1954.24 [25]
Em 1959, Bernard Brodie (1907-1989), laureado
cientista norte-americano, começou a desvendar o papel fisiopatológico das
aminas biogênicas (noradrenalina e serotonina) na depressão, após estudos em
animais de laboratório nos quais constatou que a imipramina inibia a absorção
de noradrenalina pelos neurônios, o que impedia a sua destruição por enzimas.
Na mesma ocasião, outro norte-americano, Julius Axelrod (1912-2004) demonstrou claramente
uma redução na captação de noradrenalina nos terminais sinápticos durante o
tratamento com antidepressivos tricíclicos o que confirmava sua ação de
estimulação noradrenérgica. Em 1970, pelas suas contribuições ao conhecimento
dos mecanismos da neurotransmissão, Axelrod foi galardoado com o Prêmio Nobel
de Fisiologia e Medicina, ao lado de seus colegas Bernard Katz e Ulf von Euler.18
Esses cientistas abriram o caminho para a grande postulação
sobre a fisiopatologia das depressões, conhecida como a “hipótese
catecolaminérgica”. Foi, inicialmente, proposta por Joseph Jacob Schildkraut
(1934-2006), professor e pesquisador em Harvard, em 1965. Ele baseou-se na ação
inibitória da iproniazida sobre a MAO, no bloqueio da recaptação sináptica da
noradrenalina pela imipramina e no fato da reserpina, um alcaloide que provoca
esvaziamento da noradrenalina nos terminais sinápticos, levar a depressão. Sua
hipótese sobre o mecanismo biológico da depressão está baseada na queda do
nível de catecolaminas, particularmente da noradrenalina, na fenda sináptica e
em importantes receptores adrenérgicos. Por outro lado, o excesso de tais
aminas nesta região pode estar associado à elação (excitação maníaca).[26] [27] [28] [29] [30] 50
Em 1968, o cientista sueco Arvid Carlsson e colaboradores,
e, em 1970, os russos Izyaslav P. Lapin e Gregory F. Oxenkrug postularam a
“hipótese serotonérgica” como causa da depressão, baseada na depleção da
serotonina na fenda sináptica de algumas regiões do cérebro, em decorrência da
inibição de sua recaptação, provocada por antidepressivos tricíclicos.
Inicialmente proposta como contrária à hipótese catecolaminérgica, com o tempo
as duas hipóteses se agruparam e se tornaram um construto unificado. Carlsson
recebeu a honraria do Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 2000, ao lado de
Paul Greengard e Eric Kandel, pelas suas valiosíssimas contribuições ao
conhecimento dos mecanismos de transdução no SNC.28 29 30 50
Em 1975, mais um grande passo foi dado no sentido
de se consolidar a hipótese catecolaminérgica. Após extensos estudos de
cientistas norte-americanos e europeus, Solomon Snyder, da Universidade Johns
Hopkins, e Philip Seeman, da Universidade de Toronto, ambos com seus
respectivos colaboradores, postularam a “hipótese dopaminérgica” para a
compreensão da fisiopatologia das psicoses. Basearam-se em estudos que revelaram
haver uma íntima relação entre o grau de intensidade das ligações do
haloperidol [h3] com os receptores D2 no núcleo caudado e
sua potência antipsicótica. Uma série de outros estudos revelou que os demais
antipsicóticos mantêm um grau variável de bloqueio dos receptores
dopaminérgicos D2, D3, D4, e outros, variando
de acordo com seu grau de potência antipsicótica.24 25 26 27 28 29 30 [31]
32 50
O impacto dessas descobertas na psiquiatria mundial
foi imediato e, como não poderia deixar de ser, também em Minas Gerais, onde
numerosos grupos distintos de psiquiatras se dedicavam à clínica e à pesquisa
com psicofármacos. Entretanto, logo surgiu uma questão, levantada pelos
críticos da metodologia de tratamentos psicofarmacológicos dos transtornos
psiquiátricos. Correntes psicanalíticas, que exerciam grande influência sobre a
psiquiatria nas décadas de 1960 e 70, consideravam a depressão como uma
manifestação sintomatológica de alguns conflitos internos na personalidade. De
acordo com esse ponto de vista, tais condições revelavam mesmo características
positivas, na medida em que elas eram uma forma de externalizar uma série
completa de conflitos subconscientes e traumáticos, supostamente processados
pelo próprio paciente. Assim, o tratamento farmacológico dos sintomas
depressivos, como ocorreria posteriormente com os transtornos de ansiedade, era
visto, por parte da comunidade psiquiátrica, como um grave erro, já que
impediria os pacientes de descobrirem as raízes “verdadeiras” de seus conflitos
internos. Entretanto, prevaleceu a impressão de que as principais contribuições
das descobertas dos antidepressivos e antipsicóticos para o desenvolvimento da
psiquiatria foram de duas categorias: uma de natureza de saúde social que
consistiu numa autêntica mudança de paradigmas nos cuidados psiquiátricos de
pacientes depressivos e psicóticos; a outra, de natureza puramente
farmacológica, já que esses agentes se tornaram um instrumento indispensável
para a neurobiologia e a psicofarmacologia, o que permitiu, entre outros
avanços, a postulação das primeiras hipóteses etiopatogênicas dos transtornos
depressivos e psicóticos. Essas duas considerações foram suficientes
para consagrar as terapêuticas psicofarmacológicas como fatores fundamentais
nos tratamentos, levando a uma verdadeira revolução na psiquiatria. 24 25
26 27 28 29 30 31 [32] 50
De acordo com os cânones da escola psicogenética e
em decorrência da forte influência psicanalítica sobre parte dos psiquiatras em
Minas Gerais, durante as décadas de 1970 e 80, os tratamentos psiquiátricos que
não fossem baseados na psicoterapia analítica eram vistos com certa reserva.
Havia mesmo quem considerasse o tratamento com psicofármacos “evidência de psicoterapia
não bem feita”.[33] Assim, a
psicofarmacoterapia era ignorada ou colocada em plano muito secundário pelos
grupos vinculados à escola psicodinâmica. Marcio Vasconcelos Pinheiro, com
formação no Instituto de Psiquiatria da Universidade de Maryland, um dos
expoentes da psiquiatria psicodinâmica em Minas Gerais, no período, descreveu
em um de seus esclarecedores textos que “acreditava-se que, para fazer
psicoterapia com esquizofrênicos, por exemplo, os melhores terapeutas eram os
que estavam próximos à desordem, com uma sensibilidade especial, de preferência
uma esquizoidia criativa.”33 Pinheiro esteve muito próximo da psiquiatria
norte-americana nas décadas de 1960/70, quando a escola psicodinâmica exercia
aí uma influência quase total. No início da década de 1970, ele percebeu que a
psiquiatria americana passava por substanciais mudanças. Da influência
psicodinâmica ela abraçava abertamente uma psiquiatria cada vez mais biológica,
influenciada pelos avanços das neurociências, com um aumento considerável na
prescrição de psicofármacos. Ao voltar para Belo Horizonte, em 1974, Marcio
Pinheiro, ficou impressionado com o que viu, pois aqui ocorria exatamente o
contrário. A influência das escolas
neuropsiquiátricas clássicas dava lugar, em diversos grupos psiquiátricos do
Estado, à escola psicogenética, particularmente em decorrência da influência do
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Inúmeros profissionais submetiam seus pacientes,
incluindo os psicóticos, a atendimento psicanalítico clássico, com várias sessões de análise por
semana. Desenvolveu-se, em alguns centros, um ambiente de comunidade terapêutica, além de
técnicas de socioterapia, ambientoterapia e grupoterapia. Havia também uma
crescente influência das correntes sociais da psiquiatria, a escola chamada de
“sociogenética”. De alguma forma, o que ocorrera no Exterior, particularmente
nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, vinte anos antes, chegava a Minas
Gerais com grande impacto e divulgação. 18 19 20 33
Por outro lado, o
desenvolvimento da psicofarmacologia propiciou avanços na prática clínica da
psiquiatria mineira. O tempo de permanência na hospitalização de pacientes foi
reduzido consideravelmente. Com uma média aproximada de permanência por 45 dias
em internamento hospitalar, nas décadas de 1950/60, esse índice baixou para uma
média de 21 dias em fins da década de 1970. Foi após a maciça difusão da
psicofarmacoterapia no Brasil e, particularmente, em Minas Gerais, que ocorreu
de fato a desospitalização do paciente psiquiátrico. A melhora dos quadros
agudos de psicoses, depressão e transtornos de ansiedade, gerando alívio nos
sintomas, trouxe grande progresso nos processos psicoterapêuticos, muitas vezes
travados em função dessas crises. Houve sensível melhora na qualidade de vida
dos pacientes, maior produtividade no trabalho e estudos e muito melhor
convivência social e familiar. A resistência à psicofarmacoterapia foi
reduzindo paulatinamente até que, a partir da década de 1990, seus adversários
foram reduzidos a determinados grupos esparsos e pouco significativos. Além
dessas, outra consequência benéfica para a clínica psiquiátrica foi a
necessidade percebida pelos psiquiatras mineiros de aprimoramento de suas
técnicas diagnósticas. Com diagnósticos mais precisos, baseados numa boa
propedêutica psicopatológica e clínica, o psiquiatra pode ser mais bem
direcionado para um determinado tratamento psicofarmacológico, com uma droga
específica, a fim de que os resultados de melhora clínica pudessem ser mais rápida
e efetivamente observados.
A introdução na pesquisa
psicofarmacológica e, posteriormente, na clínica de escalas de avaliação
psiquiátricas levou a uma maior precisão diagnóstica com a consequente
indicação de tratamentos mais adequados e eficientes para cada caso. Havia uma
fragilidade muito grande nos diagnósticos formulados até então. Muitas vezes, o
diagnóstico de um profissional não era acompanhado pelo diagnóstico de outro.
Diferentes formações teóricas dos psiquiatras podiam levar a diagnósticos
completamente diferentes nos mesmos pacientes. A utilização dessas escalas
melhorou de tal forma o arsenal de informações para nossos psiquiatras, que
diagnósticos muito mais precisos e corretos puderam ser feitos. Esses
diagnósticos podiam, a partir dessa época, ser melhor confrontados já que baseados
em critérios mais sólidos e uniformes. A influência do que ocorria nos Estados
Unidos e na Europa Ocidental no uso dessas escalas dá-nos bem a medida da
questão. Há muito se sabia que psiquiatras norte-americanos diagnosticavam
muito mais quadros de esquizofrenia do que os psiquiatras britânicos. Estes,
por outro lado, diagnosticavam muito mais quadros psicóticos
maníaco-depressivos do que seus colegas norte-americanos. Em vista dessas
distorções subjetivas, isto é, diagnósticos baseados em conceitos não muito
precisos e muito particulares a cada cultura, havia muita imprecisão nos
diagnósticos e, consequentemente, nas terapêuticas. Assim, os resultados
benéficos dos tratamentos estavam muito aquém do que poderia ser esperado. Em
vista dessas deficiências nosológicas, entidades psiquiátricas desses dois
países se reuniram e decidiram criar normas para maior precisão e unificação
dos diagnósticos. Apesar da grita em contrário de profissionais de correntes
psicogenéticas e psicodinâmicas, que atribuíam a tal iniciativa a redução dos
diagnósticos psiquiátricos a esquemas que poderiam ser enquadrados meramente como
classificações “botânicas”, sem qualquer conotação humana ou emocional, os resultados
de tais iniciativas foram tão bem sucedidos no aprimoramento das técnicas
diagnósticas, que logo passaram a ser adotadas não somente por alguns de nossos
pesquisadores, mas também por muitos dos psiquiatras clínicos em suas práticas
hospitalares e privadas. A escala mais antiga usada em nosso meio foi a Escala de Hamilton para Depressão, cuja versão final é de 1960.[34] Nos mesmo período, surgiu
uma escala que logo se popularizou por todo o mundo, incluindo Minas Gerais,
para avaliação geral de transtornos psiquiátricos, a British Psychiatric Rating Scale (BPRS), de Overall e Gorham, com
ampla aplicação em hospitais e ambulatórios, seja para pesquisas, seja para a
clínica.[35] Surgiram outras escalas
para depressão, como em 1972, a Escala
Zung de Auto-Avaliação e, em
1979, a Escala de Montgomery-Åsberg, esta
mais utilizada em pesquisas psicofarmacológicas.[36] A partir de 1979, a Escala Beck para Depressão, esta também
de auto-avaliação, passou a ser amplamente utilizada, o que facilitou muito o
diagnóstico psiquiátrico.
Paralelamente ao
desenvolvimento das escalas de avaliação psiquiátricas, foram se desenvolvendo
critérios de diagnósticos mais precisos. As primeiras tentativas, usadas apenas
por um número restrito de pesquisadores mineiros voltados para a área da
pesquisa psicofarmacológica, foram: Critérios
Diagnósticos de Feighner e colaboradores, da Universidade de Washington, em
Saint Louis. Nela, foram desenvolvidos 16 critérios básicos de categorias
diagnósticas para depressão.[37] Em 1977, surge o Research Diagnostic Criteria (RDC), de
Spitzer, Endicott e Robbins, da Universidade de New York, que englobava 21
categorias diagnósticas gerais da psiquiatria.[38] Em 1978, foi desenvolvido por Spitzer e Endicott, no
Instituto Estadual de Psiquiatria de Nova York, o Roteiro para Distúrbios Afetivos e Esquizofrenia (SADS), entrevista
estruturada, cujos escores podiam ser processados em computador e apresentar
importante contribuição ao diagnóstico psiquiátrico, notadamente das
depressões.[39] Ele foi baseado
fundamentalmente nos critérios diagnósticos do RDC, tendo sido a base para o
desenvolvimento das modernas entrevistas estruturadas norte-americanas. Esses pesquisadores logo
lideraram um movimento da American Psychiatric Association (APA) no sentido de
reformular o velho Manual Diagnóstico e
Estatístico Versão II (DSM-II), de 1968, já completamente defasado em
função do desenvolvimento e das novas descobertas no campo da psiquiatria. Esse
movimento terminou na criação do Manual
Diagnóstico e Estatístico Versão III (DSM-III), em 1980, que mudou
completamente os critérios diagnósticos até então existentes. Os diagnósticos,
muito frequentes até então, de “reação esquizofrênica” e “reação
maníaco-depressiva”, herança da escola psicogenética, foram substituídos por
critérios diagnósticos mais rigorosos, com nítido retorno aos princípios
fenomenológicos e kraepelinianos. Oito anos depois, a APA, revisou e ampliou
este manual.[40] Essas
novas categorias diagnósticas transformaram inteiramente o panorama da
psiquiatria mundial, com amplas repercussões aqui em Minas Gerais. A
Organização Mundial de Saúde, que ainda utilizava o seu Código Internacional de
Doenças – Versão 9 (CID-9), datado de 1975, em função de seu obsoletismo,
atualizou seus critérios, baseando-se no DSM-III, e, em 1993, lançou a CID-10,
o que trouxe para nossos psiquiatras um conjunto de critérios muito mais
precisos e confiáveis de diagnóstico.[41]
O maior impacto que o avanço
da ciência trouxe para a psiquiatria mineira foi, indiscutivelmente, trazido
pelas neurociências. Em realidade, esta área do conhecimento humano tivera
início no século XIX, com os primeiros experimentos e descobertas da psico e da
neurofisiologia, da neuropatologia, da histopatologia, da farmacologia, da neuropsiquiatria
e da neuropsicologia. Na primeira metade do século XX os avanços se sucederam
numa marcha ainda mais intensa. Só para referenciar os fatos mais importantes e
para não cansar demais os leitores, assinalo aqui apenas os mais significativos.
Os primeiros neurotransmissores, como a noradrenalina, foram descobertos em
1911 por George Barger e Henry Dale, nos Estados Unidos. Em 1914, Dale
descobriu a acetilcolina. Em 1929, Hans Berger, na Alemanha, publica seus
achados sobre o primeiro eletroencefalograma humano. Em 1929, Walter Cannon,
nos Estados Unidos, formula seu conceito sobre homeostasia. Em 1930, John
Eccles, na Inglaterra, revela o mecanismo da inibição central dos reflexos
flexores, passo inicial para a descoberta da eletrofisiologia do neurônio. Em
1931, Max Knoll e Ernst Ruska, na Alemanha, inventam o microscópio eletrônico,
de fundamental importância nos futuros estudos do cérebro. Em 1932, Edgar
Adrian e Charles Sherrington, da Inglaterra, dividem o Prêmio Nobel por suas
descobertas sobre as sinapses e as transmissões neuroquímicas. Em 1936, o
neurocirurgião português António Egas Moniz publica seus experimentos pioneiros
sobre a lobotomia frontal em humanos, o que o levou a ser galardoado com o
Prêmio Nobel de Medicina de 1949, até agora o único obtido por um autor de
língua portuguesa na área das ciências. Em 1936, Henry Dale e Otto Loewi
dividem o Nobel pelo seu trabalho com a neurotransmissão. Em 1937, James Papez
(EUA) publica seu trabalho sobre o sistema límbico e, no ano seguinte, sua
“teoria visceral” da emoção. Em 1937, John Zachary Young sugere que os
neurônios gigantes da lesma (Aplysia)
poderiam ser usados com facilidade para a compreensão das células nervosas, fato
que acelerou o avanço da biologia celular e molecular. Em 1938, Ugo Cerletti e
Luciano Bini, na Itália, publicam os resultados de seus tratamentos com
eletrochoque em pacientes esquizofrênicos, mudando o rumo da terapêutica
psiquiátrica. Em 1949, Horace Winchell Magoun descreve o sistema reticular
ativador ascendente e, neste mesmo ano, associado a Giuseppi Moruzzi publica
uma obra seminal: Formação Reticular do
Tronco Cerebral e a Ativação do EEG. Em 1949, a origem neurológica das
emoções tem enorme avanço com a ampliação da teoria de Papez por Paul MacLean,
integrando-a à síndrome de Klüver-Bucy e à psicologia freudiana. Foram então
dados passos fundamentais para se descobrir toda a ação do sistema límbico nas
emoções que culminaram na descoberta do papel da amígdala nesse setor.[42] Em 1949, Donald Hebb, no Canadá, publica A Organização do Comportamento – Uma Teoria
Neuropsicológica, o que deu enorme impulso à neuropsicologia. Em 1950, o
neurofisiologista e neuropsicólogo norte-americano Karl Lashley publica Em Busca do Engrama, modificando os
paradigmas na área da memória. Em 1950, o químico francês Paul Charpentier
sintetiza a clorpromazina, uma nova droga antipsicótica, o que levou, dois anos
após, ao surgimento da era da psicofarmacologia. Em 1952, nos Estados Unidos, a
APA publica o Manual Diagnóstico e
Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), a primeira tentativa de uma
classificação mais moderna, após os trabalhos pioneiros e fundamentais de Emil
Kraepelin, de 1903.
Mesmo assim, com todos esses
avanços da ciência, aqui em Minas Gerais dispúnhamos de poucos métodos
auxiliares para um diagnóstico psiquiátrico mais apurado e com menor margem de
erros, até a década de 1970. A partir daí os acontecimentos se precipitaram e o
avanço das neurociências foi avassalador. Continuamente os paradigmas até então
considerados cláusulas pétreas das teorias da mente foram sucessivamente sendo
derrubados com os novos conhecimentos advindos das novas tecnologias à
disposição da medicina. Vejamos, apenas en
passant, alguns dos mais importantes avanços a partir daí. Até então,
dispúnhamos apenas de exames complementares muito limitados para o diagnóstico
de transtornos neuropsiquiátricos. Os Raios-X, descobertos em 1895, por Wilhelm
Roentgen, na Alemanha, ainda consistiam no principal método não invasivo de se
avaliar lesões cerebrais ou quadros orgânicos. Sua limitação era patente e
grande parte das patologias orgânicas cerebrais passavam ao largo de qualquer
conhecimento por parte das equipes neuropsiquiátricas. Havia ainda o
pneumoencefalograma, um exame por demais cruento para se avaliar lesões
expansivas intracranianas, além de sua limitação. A arteriografia também era
utilizada para se avaliar a rede arterial cerebral, para a detecção da possível
presença de aneurismas ou outras alterações vasculares. Também era um método
cruento e limitado, com relato na literatura de incontáveis mortes durante o
exame em decorrência de reações imunológicas ao contraste iodado, além de
terríveis cefaleias nas horas subsequentes ao exame.
A grande revolução no
diagnóstico pelas neuroimagens começou em 1972, quando o engenheiro britânico
Godfrey Hounsfield, seguindo descobertas de Allan Cormack, desenvolveu um
método em que as imagens de Raios-X eram processadas em um computador de grande
capacidade, gerando o que ficou conhecido como Tomografia Computadorizada
Cerebral (TC). Pela primeira vez na história, o cérebro humano podia ser visto
de forma semelhante a um atlas de anatomia, com detalhes até então jamais imaginados
pela medicina. Cormack e Hounsfield, por sua extraordinária invenção,
considerados quase que “benfeitores” da medicina, foram agraciados com o Prêmio
Nobel de Fisiologia e Medicina, em 1979. Em 1981, Hounsfield tornou-se
Cavaleiro do Império Britânico. A partir de 1981, Belo Horizonte recebeu seu
primeiro tomógrafo computadorizado, que, desde então, tornou-se peça
indispensável para o diagnóstico em psiquiatria.[43]
Entretanto,
a TC mostrava-se ainda de pouca acurácia na observação de detalhes da estrutura
do tecido neural, incapacitando o investigador ou o clínico de ver minúcias que
poderiam ser fundamentais para o diagnóstico e tratamento das doenças.
Tornava-se necessário o desenvolvimento de uma técnica mais aprimorada de
observação da anatomia neural e ela surgiu com o desenvolvimento da ressonância
nuclear magnética do cérebro. No final da década de 1930, um físico russo,
naturalizado norte-americano, Isidor Rabi (1898-1988), posteriormente
galardoado com o prêmio Nobel de Física, em 1944, desenvolveu sua invenção da
corrente de ressonância magnética atômica e molecular, método para observar o
espectro atômico. Com o progresso da física, havia sido detectado que os
prótons nos núcleos dos átomos giravam em torno de seu próprio eixo, movimento
chamado de spin. Os prótons e os
elétrons em suas órbitas ao redor do núcleo de certos átomos formam dois pólos
elétricos (dipolo), que são cargas elétricas opostas separadas por um espaço.
Estes dipolos estão em constante movimento, o que forma um dipolo magnético norte-sul.
Desde 1946, os cientistas
norte-americanos Felix Bloch (1905-1983) da Universidade de Stanford, e
Edward Purcell (1912-1997) de Harvard, vinham estudando a ação de campos magnéticos em núcleos
de átomos, onde provocavam variados graus de absorção de energia em diferentes
radiofrequências do espectro eletromagnético e re-emitiam esta energia quando
os núcleos voltavam para o seu estado original. A força do campo magnético e a
radiofrequência se entrecruzavam uma com a outra, como já havia sido demonstrado
anos antes pelo físico irlandês, Sir Joseph Larmor (1857-1942). Posteriormente, na década
de 1960, o químico norte-americano Paul Lauterbur (1929-2007)
aprimorou a técnica adaptando-a para o estudo de tecidos humanos. Seu trabalho,
publicado na revista Nature, em 1973,
foi um dos marcos memoráveis das neurociências do século XX. Em 2003, Lauterbur
foi agraciado com o Prêmio Nobel por sua espetacular descoberta, ao lado de
Peter Mansfield (1933- ), o primeiro a desenvolver a utilização de gradientes
no campo magnético.[44] [45] A
ressonância nuclear magnética (RNM) tornou-se a principal técnica de rotina
para diagnóstico de muitas doenças, substituindo e ultrapassando a TC. A RNM
tem inúmeras vantagens, pois não é invasiva, não utiliza radiação ionizante e
tem uma resolução nos tecidos menos densos muito elevada e ótima capacidade de
discriminação em qualquer plano de imagem. A imagem que revela a morfologia dos
tecidos cerebrais traz o detalhamento de um atlas anatômico.
Mas,
os cientistas precisavam de técnicas mais avançadas na medicina, se possível
que incluíssem estudos funcionais, a fim de avaliar a fisiopatologia dos transtornos.
Pesquisas que utilizavam substâncias radioativas, cujas emissões identificavam
seu trajeto no organismo, já estavam em andamento desde a década de 1960. Na
neuropsiquiatria, os estudos pioneiros couberam aos psicólogos cognitivos
Michael Posner e Steve Petersen e ao neuroradiologista Marcus Raichle.
Desenvolveram um método baseado nos trabalhos do fisiologista holandês
Franciscus Donders, de 1968, denominado de método
de subtração. Esse método utiliza a subtração de um mapeamento cerebral
obtido durante um determinado estado de comportamento cerebral de outro
mapeamento feito durante um estado diferente de comportamento. Um mapeamento
realizado enquanto um sujeito olhava para uma tela branca podia ser subtraído
de um mapeamento feito quando o mesmo sujeito olhava a mesma tela com uma
palavra escrita. O mapeamento fruto dessa subtração revelava um processo
especificamente associado com a leitura.[46] Este
é o princípio da detecção do funcionamento das funções cerebrais observado pela
Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET-SCAN) e pela Ressonância Nuclear
Magnética Funcional (fRNM). As duas técnicas permitem obter, para um
determinado estado cerebral, uma cartografia tridimensional do fluxo sanguíneo
(PET) ou do estado de oxigenação dos capilares (fRNM) utilizando um marcador
(água radioativa com oxigênio 15 no PET, e desoxi-hemoglobina na fRNM). Uma
ativação cerebral provoca localmente um aumento do fluxo sanguíneo sem aumento
do consumo de oxigênio. A PET permite detectar os aumentos correspondentes do
acúmulo local de água radioativa, e a fRNM as diminuições locais da
concentração de desoxi-hemoglobina.[47] [48]
Essa
tecnologia revolucionária permitiu aos cientistas mapear a ação de drogas no
SNC, notadamente os psicofármacos, além de traçadores radioativos para o estudo
das diversas patologias neuropsiquiátricas. Com ela, foi possível demonstrar,
de forma inequívoca, o acerto das teorias catecolaminérgicas para transtornos
psiquiátricos formuladas nas décadas de 1960/70. Através dela, as funções
cognitivas puderam ser mais intensamente avaliadas. Todas as funções psíquicas
têm sido intensamente investigadas e, em conjunto com a clássica psicologia
cognitiva iniciada nas décadas de 1950/60, têm nos trazido tal volume de
informações que uma nova área do conhecimento do cérebro se desenvolveu a
partir da década de 1970: as neurociências cognitivas. Tais avanços repercutiram
beneficamente em nossa prática clínica em Minas Gerais, na medida em que passamos
a dispor de melhores indicações de tratamentos e orientações nas mais diversas
patologias neuropsiquiátricas. Isso veio associado a uma nova visão sobre idéias
biológicas mais recentes e mais profundas acerca da natureza dessas patologias.
Na
década de 1990, a psiquiatria foi uma das áreas médicas incluídas no Projeto
Genoma. Um dos principais pilares da “Década do Cérebro”, que adentrou por
parte da década de 2000, trouxe contribuições fundamentais para a compreensão
de parte dos mecanismos das doenças mentais. Hoje temos evidências
inquestionáveis do papel da genética na gênese dos transtornos psiquiátricos.
Mas surgiram também evidências não menos importantes do papel do meio ambiente
nesse processo, a epigenética. A maioria das doenças mentais é causada por mais
de um gene. Para a esquizofrenia já são conhecidos mais de 100.[49]
Da interação entre genes e ambiente, em proporções que variam de transtorno
para transtorno, temos uma complexíssima relação que ainda estamos longe de
compreender mais profundamente. A biologia molecular e a genética têm nos
trazido um volume de dados novos que tem provocado mais alterações de
paradigmas no enfrentamento dos transtornos psiquiátricos.
Como
descrito por Eric Kandel, o Prêmio Nobel em 2000, graças às suas descobertas
fundamentais sobre a síntese de proteínas cerebrais quando dos processos de
aprendizagem, a síntese da neurobiologia, da psicologia cognitiva, da
neurologia e da psiquiatria tem nos trazido avanços de monta no conhecimento
dos transtornos mentais. Para Kandel, “a psicologia cognitiva moderna nos
revela que o encéfalo retém uma representação interna do mundo, enquanto a
neurobiologia tem nos mostrado que essa representação pode ser entendida em
termos de células nervosas individuais e de suas interconexões. Essa síntese
tem nos dado uma perspectiva melhor sobre a percepção, ação, aprendizagem e
memória. Ela também nos deixa com idéias biológicas novas mais profundas sobre
a natureza dos distúrbios psiquiátricos.” Mais adiante, Kandel nos alerta que
também “os avanços da biologia celular e da biologia molecular contribuíram
para expandir nossa visão, o que nos permitiu perceber inter-relações que
anteriormente não podiam ser antecipadas entre os fenômenos biológicos e
psicológicos.”[50]
Todo
este longo arrazoado teve por objetivo a exposição do que se tornou evidente a
partir da década de 1980: o cérebro e a mente fazem parte de um todo
indivisível. Ambos formam uma síntese e não podem ser compreendidos como partes
separadas ou independentes. Compõem um conjunto harmônico, como uma grande
orquestra afinada, melódica e ritmada. Voltamos aqui, portanto, à constatação
formulada por Baruch Spinoza, no século XVII, como transcrito na epígrafe deste
texto. Como foi constatado por Andreasen, as doenças mentais, apesar de seu
componente físico, também são mentais. Elas são doenças que afetam a mente, não
importa o quanto de cerebrais sejam. São doenças que afetam a maioria das
capacidades humanas, como o ato de lembrar, pensar, sentir, interpretar
informações, perceber o ambiente social, desvencilhar-se de tensões. Caso
ignoremos a importância da mente nas doenças mentais, seremos levados à sua má
compreensão e, certamente, seremos conduzidos ao erro. Caso sejam consideradas
apenas doenças cerebrais, os pacientes poderão ser desumanizados e
impessoalizados. O maior risco dos pacientes com doenças mentais é serem vistos
como “casos” genéricos, tratados de forma simplista ou padronizada. O corpo, aí
incluído o cérebro, pode ser tratado de forma genérica, mas as mentes são
individualizadas e únicas. O paciente com uma doença mental requer que os seus
sintomas sejam avaliados e tratados dentro do contexto de seus recursos
pessoais, sociais, emocionais e intelectuais. As doenças mentais devem ser
encaradas como transtornos da mente/cérebro. Não há mente com uma abordagem
exclusiva do cérebro e não há cérebro com uma abordagem exclusiva da mente.[51]
Temos
vencido em Minas Gerais, gradualmente, há mais de duas décadas, a dicotomia
psicofármacos versus psicoterapia. Esta dicotomia é apenas uma falácia que
esteve tão em voga nas décadas de 1970/80. É uma tentativa de dividir os
transtornos psíquicos em mente e cérebro, cada um independente do outro. Muitas
pessoas são enormemente beneficiadas com a psicoterapia, apoio ou orientação. Muitas
são beneficiadas com a psicofarmacoterapia. Outras o são com ambas. O que as
neurociências cognitivas nos revelam hoje é que a psicoterapia age sobre a
mente e o cérebro. Quanto mais entendemos como funciona o cérebro e como ele
muda em resposta à experiência, mais constatamos a eficácia da psicoterapia na
mudança das funções da mente, como a emoção, a razão, a memória, o cálculo, o
planejamento e as demais funções cognitivas. A ação sobre essas funções leva,
por sua vez, à modificação das conexões e comunicações entre neurônios, num
mecanismo conhecido como plasticidade neural. 42
A
natureza da psicoterapia é ajudar as pessoas na modificação de sentimentos, pensamentos
e comportamentos que não estejam em sintonia com seu bem-estar. Para tal, as
diversas técnicas psicoterápicas, como as psicodinâmicas, cognitivas,
comportamentais, psicossociais, têm se mostrado úteis e eficazes. Todas, ao
trabalhar com os mecanismos de plasticidade neural, levam ao aprendizado de
novas maneiras de responder e adaptar-se e, consequentemente, a mudanças no
modo de sentir, pensar e ser comportar. Assim, a psicoterapia, à sua maneira, é
também uma forma de terapêutica “biológica”, como o uso de psicofármacos e
outros métodos físicos. Essa visão representa um dos grandes avanços da
psiquiatria propiciados pelas neurociências.46 49 50
Como
uma antecipação do que as neurociências hoje estabelecem como um dos novos
paradigmas na psiquiatria, desde a década de 1980, diversos de nossos
psiquiatras vem adotando uma postura psicoterápica mais aberta, flexível,
eclética na medida do possível, multifacetada, fugindo do dogmatismo e do
isolamento das escolas do pensamento teórico, tendo em vista um objetivo maior:
a melhor qualidade de vida para os pacientes psiquiátricos.[52] [53] A
herança das neurociências para a psiquiatria torna-se, assim, elemento crucial
para o progresso que observamos em nossa especialidade neste último meio século
em Minas Gerais. Tenho certeza que novos avanços, novos grandes voos estão por
acontecer, quebrando outros paradigmas, vencendo antigos preconceitos e tabus,
levando mais saúde e paz para quem sofre psiquicamente.
Referências
Bibliográficas
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Ciências Médicas de M.G; Ex-preceptor da Residência de Psiquiatria da Fundação
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