terça-feira, 26 de novembro de 2013

Elogio do Envelhecimento - G. Abraham


 
Salvador Dali. Persistence Of Memory, 1931.




             Em 1988, quando de um curso na Universidade de Limoges, França, tivemos a oportunidade de conhecer o Prof. G. Abraham, psiquiatra e psicanalista das Universidades de Genebra e Turim. Um profissional e pesquisador brilhante. Logo adquirimos seu livro Introduction à la Psychogériatrie, que ele escreveu em coautoria com o Prof. I. Simenone, que também conheci neste mesmo evento, publicado pela Ed. Simep, de Paris, em 1984. Apaixonamo-nos por seu texto e, logo após meu retorno ao Brasil, traduzi o capítulo abaixo, em 1990. Desde então, esta brilhante descrição psicológica do envelhecimento (como vemos o nosso próprio envelhecimento) nos acompanha em todos os cursos de psicogeriatria que temos ministrado neste último quarto de século. Trata-se de uma obra fundamental para quem deseja conhecer mais sobre as diversas visões psicológicas do envelhecimento.
  
               Disponibilizamos aqui, para todos aqueles que seguem nosso blog, este texto fundamental em gerontologia e psicogeriatria.



ELOGIO DO ENVELHECIMENTO


G. Abraham (Professor dos Departamentos de Psiquiatria das Universidades de Genebra e Turim).
  
Extraído de Introduction à la Psychogériatrie de I. Simeone e G. Abraham. Ed. Simep, Paris, 1984.

Tradução de Antônio Carlos de Oliveira Corrêa, 1990.


I- Quando Começa o Envelhecimento?

A cerimônia biológica do nascimento é indubitavelmente considerada pelo ser humano como um fato de importância extraordinária. Ela marca o começo da vida, da qual não se conhece bem as razões nem os significados, mas à qual se reconhece uma prenhez pragmática representada, acima de tudo, por aquilo que se convencionou chamar de a consciência do existir. Não é menos certo que o nascimento é descrito, do ponto de vista psicológico, como um fenômeno traumático. Bem mais, se o parto é considerado como um modelo único de todas as manifestações sucessivas da angústia (Rank), a idéia do nascimento traumático é associada paralelamente à convicção de que, beneficiando-se no ventre materno de prerrogativas insubstituíveis, o feto seria, no momento do nascimento, expulso de uma situação de bem-estar, na qual predominam a proteção e a estabilidade.

Excluído do ventre materno, esse feto que se transforma em nascituro, seria condenado à permanência do risco e à instabilidade instituída como regra. Em suma, o nascimento provocaria o desaparecimento da inocência biológica primária e com a angústia que este nascimento comporta, surgiriam o medo, a dor e a incerteza. Se o nascimento é julgado como um traumatismo, é preciso concluir que, desde seu começo, a vida é considerada pelo ser humano com desconfiança, quando ele lhe empresta atributos mais satisfatórios no curso de sua fase potencial, do mesmo modo que isto parece se concretizar no seio materno. Com o medo, a ansiedade, a dor e a incerteza, começaria para nós, nascidos com dificuldade, uma decadência inevitável: é aí que situar-se-ia o início efetivo do envelhecimento. A vida não seria, em definitivo, mais do que um processo de envelhecimento (grifo do tradutor).

A família que concebeu a criança e que a recebe em seu seio apresenta-se como uma entidade que deseja tornar-lhe o aparecimento da vida como um acontecimento satisfatório e positivo. Quer se deseje ou não, acaba-se sempre por encontrar em qualquer um que nasce (especialmente se nasce em nossa família) uma parte de nós mesmos que recomeça a viver. Entretanto, esta família amiga e acolhedora que de uma certa maneira busca prolongar o ventre materno ou atenuar as desagradáveis consequências previstas em seguida ao seu abandono, esta família amiga traz em seu seio inúmeros outros fatores de ansiedade e de perigos para o ser que vem ao mundo; ela impõe um caráter, exigências, regras, separações, competições, frustrações. Compensadora em aparência, as desvantagens inerentes à
individualização do novo ser, esmagam frequentemente este último com o propósito evidente de fazer obstáculo a esta mesma individualização, em favor da predominância das demandas do grupo. Em todos os casos, a tomada de consciência da existência que o novo ser realizará, pouco a pouco permitir-lhe-á igualmente constatar a realidade de um risco fatal de isolamento individualista. O fato de ser si mesmo significará estar separado das coisas e de alguém. A maturação e mesmo o envelhecimento fundam-se sobre esta individualização progressiva, sobre um desprendimento de tudo aquilo que poderia não ser apropriado a si mesmo para buscar nos limites compactos da individualização pessoal esta garantia e esta validade do viver que o nascimento tinha esboçado, mas não definido.

A despeito das tentativas feitas pela família, o grupo, a sociedade, para neutralizar o processo de individualização, de fato, este prossegue seu trabalho de separação, de distanciamento e de egocentrismo. Mergulhado no anonimato do grupo, nosso envelhecimento poderia ser uma espécie de meio termo do envelhecimento global. Então, bem individualizados, nós carregamos sobre nossos ombros nosso envelhecimento pessoal; não podemos nem diluí-lo nem dissimulá-Io. Envelhecer juntos pode fazer crer que se está um pouco menos velho. Na realidade, envelhecer a dois não é mais do que o confronto de envelhecimentos próximos, mas diferentes.

A tomada de consciência do existir vai de par com a iniciação de uma certa vontade de viver. Ela é um pouco similar àquilo que Bergson descreveu como o elan vital. Entretanto, é possível assinalar desde o começo o que se denomina de ambivalência, quer dizer, a coexistência de dois vetores paralelos e opostos que se contradizem alternativamente. Da mesma maneira que ao nascimento, cerimônia biológica inicial da vida, opõe-se a idéia de seu caráter traumático, a vontade de viver, de assumir pessoalmente o desejo e a gestão da existência, é contrariada por uma vontade de recolhimento, de abandono e de morte, que não é unicamente o apanágio de manifestações depressivas. Pelo contrário, esta vontade de morrer descrita pelos filósofos, poetas, psicólogos, parece suficientemente potente para poder compensar todo elan vital. Por outro lado, a noção de um ventre materno suceptível de permitir um estado de graça pré-natal pode coincidir com uma vontade de retornar a ele e, por este fato, a uma forma de morte correspondente ao nirvana. De qualquer maneira é justo dizer, partindo do conhecimento do conjunto do processo de envelhecimento, que este faz parte, tanto da vontade progressiva de viver, como desta vontade obstinada de morrer, não obstante o fato de que se queira atribuir à vida todas as qualidades do que se convencionou chamar o bem e à morte as desta entidade conhecida como sendo o mal. Na realidade, estas atribuições drásticas não parecem exatas. Às vezes a aspiração do elan vital parece aquela de avançar em uma direção paradoxal, em direção a um retorno, à não vida que precedia a concepção. Ela pode se servir das características típicas desta entidade positiva descrita como o bem quando de fato a superabundância da vida com suas exigências, seus desejos, suas dores e seus imperativos pulsionais, pode trazer, justamente, a sensação de que o fenômeno vital em seu conjunto apresenta-se como qualquer coisa de negativo e de maléfico. Reencontra-se com este propósito toda a problemática levantada por Freud em seu conceito do instinto de morte que opõe-se dialeticamente ao instinto da vida.

Mesmo a saúde e aquilo que se convencionou chamar a normalidade podem ser consideradas como uma adaptação coletiva que comporta obrigações e controles que acabam por incomodar-nos. A exuberância, a explosão dos fenômenos vitais, requerem de nossa parte uma tomada de posição constante, uma comprovação constante quanto a seus resultados e a sua validade coletiva. Não é questão jamais de poder abandonar-se tranquilamente, de degustar a vida em solidão tranquila, mas, sobretudo, de confrontar-se sem cessar com regras estabelecidas pelos homens que nos precederam na existência e que parecem pedir-nos contas em relação à maneira pela qual nós utilizamos o ardor vital do qual somos o objeto. Ser si mesmo não permite jamais chegar a uma situação tal que, para alguém, a vida fosse verdadeiramente uma surpresa e uma novidade. Ser si mesmo consiste mais frequentemente em imitar alguma coisa que parece mais conveniente em relação àquilo que é proposto, de maneira que os parâmetros que nós chamamos desenvolvimento e que deveriam estar conforme nossa individualização específica, sejam já indicados como elementos que, de uma parte, apareçam como benéficos e, de outra parte, insiram-se no contexto da evolução como se existisse no ser humano uma espécie de medo de descobrir nas manifestações do desenvolvimento do elan muitos outros sinais de enfraquecimento deste elan e do aparecimento dos fenômenos opostos de degradação. Entretanto, mesmo o conceito de felicidade está submetido a um duplo uso; parece ligado, de um lado, à tendência típica à expansão própria da vida e aos seus impulsos e, de outro, à atenuação de um frenesi vital excessivo e a seu redimensionamento nos limites mais tranquilos e já decadentes.

No conjunto das relações humanas, os elementos compreendidos no termo global de comunicações referem-se a esta ambivalência a respeito da vida. De fato, se é possível entendermos e comunicarmos tanto através de fatores implícitos no desenvolvimento e no ardor da vitalidade, é igualmente possível "a contrario" exprimirmos através daquilo que é comum à degradação e ao envelhecimento; poetas, artistas, linguistas e outros especialistas da comunicação porque servidos, para realizar suas obras de maneira válida, do elan vital fonte de promessas, todas ilusórias, sejam elas de deficiências, carências, desilusões ligadas ao declínio e à perda do élan vital. visto nestes termos o processo involutivo que já nos assistiria desde o começo da vida, não pode ser julgado como um acontecimento puramente acidental que prejudicaria o desenvolvimento biológico com uma incoerência incompreensível. Em compensação, o fenômeno involutivoparece possuir uma dupla textura: aquela do opositor da evolução e do elan vital e aquela comparável a um molde que conteria o elan vital em dimensões de uma maturação adequada e ordenada. O processo involutivo representaria, em suma, um contrapeso indispensável que constituiria em relação à brutalidade explosiva do elan vital, uma possibilidade única de dar-lhe uma significação. Uma vida livre de toda contra-reação involutiva poderia ser desordenada e absurda enquando uma vida condicionada e limitada pelo processo involutivo tomaria uma dimensão aceitável, no seio da qual valores precisos poderiam concentrar-se e definir-se.

Regredir, por exemplo, não seria somente o contrário de evoluir, mas uma forma particular de maturação e de individualização que manifestar-se-ia através do enfraquecimento do empurrão biológico inicial e constituiria, desta forma, a base de uma historicidade individual típica; é como se a matéria bruta das primeiras pulsações da vida se dispersasse para deixar o lugar para motivações cada vez mais pessoais, cada vez mais ligadas aos acontecimentos progressivamente mais significativos de nosso mundo. Consequentemente, somente a involução garantiria a certeza da individualidade e do desenvolvimento efetivo. Somente uma evoluçao sufuciente poderia permitir, de resto, o processo involutivo correspondente. Estar em estado de regressão consistiria em poder dar de maneira apropriada uma forma à impulsividade desordenada que está em nós. Desta forma, a involução é um processo relativo que modela e completa toda forma de desenvolvimento. Todo desenvolvimento ininterrupto não teria mais sentido e, acima de tudo, não teria mais história.

Os controles sociais sobre nossa individualidade, as tentativas incansáveis da sociedade para nos confundir na massa, os modelos pré-fabricados que ela nos propõe continuamente com o objetivo de assegurar a uniformidade, tudo isso poderia igualmente constituir um esforço que tenha por objetivo anular a morte de alguém para reabsorvê-Ia no conjunto, uma tentativa que tenha por objetivo criar a impressão de que o processo involutivo de alguém que não seria mais do que um fato relativo. No grupo, à involução de um corresponde a evolução, pelo menos aparente, do outro; o envelhecimento se reduz a uma cifra cronológica e a um ponto de referência esquemática de tipo biológica. Entretanto, cada um de nós se reconhece muito melhor em sua própria involução do que em seu próprio desenvolvimento. A sociedade prima o desenvolvimento porque este é justamente muito menos pessoal e muito mais assimilável do que aquilo que se chama a "decadência".

De outra parte, pode-se imaginar que o desejo mais caro do homem seja o de prolongar indefinidamente a juventude, de poder construir uma juventude eterna. Na realidade, todas as épocas da vida, compreendida a velhice, estão submetidas a esta aspiração, a esta veleidade de poder durar até o infinito, de ser preservado da usura do tempo. A esperança de poder prolongar a velhice e de conseguir atingir uma juventude eterna, pouco possível, por uma velhice eterna, persiste na imaginação humana. Toda época da vida é relativa às outras épocas. Se nascêssemos já velhos este estado seria provavelmente considerado por nós como a melhor das idades.

Aparentemente nós depreciamos a velhice porque ela nos aparece como um enfraquecimento, uma perda da juventude; bem mais, a perda da juventude aparece-nos como uma doença no sentido completo do termo. Na prática, a juventude é uma época comum a todos, que não tem para todo futuro, a não ser uma não juventude, a qual, de resto, não será prerrogativa de alguém, quer dizer, esta não juventude representará uma espécie de escolha seletiva da natureza.

É o envelhecimento verdadeiramente inato ao homem? Está ele potencialmente presente desde o nascimento tal como um componente da vida ou constitui-se num fato adquirido que aprender-se-ia no curso da existência e que poder-se-ia sempre perfazer e, por que não, prolongar?

A velhice pode ser também concebida, antes, como uma aquisição do que como um destino, um pouco como a identidade individual que se adquire na aparência, imediatamente com dificuldade destacada do ventre materno, mas que, na realidade constitui-se, pouco a pouco, numa verdadeira aprendizagem, no curso da qual aprendemos a sermos nós mesmos. Esta identidade não é, além disto, um fato puramente individual, mas refere-se às contribuições e conceitos coletivos. Na prática, também, o envelhecimento não é jamais um fenômeno isolado: não se envelhece só, não se é velho só, sempre se é velho, repetimos, em relação aos outros ou em relação a um conceito de nosso passado, conceito fundado igualmente em grande parte, sobre bases sociais e coletivas.

            Sob este prisma, envelhece-se sempre ao mesmo tempo que alguém, se é sempre, e acima de tudo, o velho de alguém. É verdadeiro, contudo, que o aspecto comunitário do envelhecimento não constitui mais do que um elemento secundário. Encontra-se mais ligado, com efeito, à comunidade pela aceitação de seu próprio desenvolvimento do que pela aceitação de seu próprio envelhecimento. O desenvolvimento socializa ao passo que o envelhecimento isola, e este isolamento contribui ainda para acentuar a personalidade: o adolescente, por exemplo, busca ecrê. Ele se personaliza através de seus atos, seja através de um reconhecimento social, que em realidade poderia revelar-se uma pseudo-personalização, ao passo que o velho se personaliza por ele mesmo, sem dever recorrer a uma confirmação através dos valores sociais que, sendo coletivos, são enganosos para a individualização. Uma medalha concedida pela sociedade, que deveria trazer uma distinção, assemelha, em verdade, o indivíduo a uma categoria coletiva, à categoria daqueles que merecem. Desta forma, a sociedade pode servir-se de outros fatores de distinção entre seus membros, mas estes fatores não fazem, mais frequentemente, do que acentuar uma espécie de pseudo-identidade.

A título de exemplo, podemos citar as características sexuais. O fato de termos um sexo nos distingue ao mesmo tempo em que nos coloca em uma categoria.

Uma das características importantesque contribui de maneira certa para a construçãoda identidade social é nossa dimensão cronológica. Por sermos nós mesmos, não dispomos unicamentede um aspecto psico-orgânicodado, situado no espaço, mas somos o objeto de um coeficiente cronológicoque nos marca até condicionar na base a espontaneidade o desabrochar de nossa verdadeira pessoa.

Em conclusão, humana não pode ser processo involutivo.O tudo que se apresenta como válido na vida reatado de uma maneira ou de outra ao amor, ele mesmo, não escapa a esta regra. Quando uma pessoa diz a outra que ela o ama, isto implica imediatamente em uma demanda. Quanto tempo ela o amará? Quanto tempo durará o amor?

Isto quer dizer que não somente a cronologia do amor constitui um fator não desprezível neste acontecimento emotivo, mas também que o amor, ele mesmo, inserir-se-á no processo involutivo. De fato, o amor envelhece, ele também, e envelhecer por amor pode significar enfraquecer-se, desabar-se, tornar-se menos interessante, mas isto pode igualmente significar durar, persistir, ir além da ênfase momentânea.

Outras emoções fortes ou fracas participam deste envelhecimento. A agressividade, tanto quanto o amor, está submetida a transformações involutivas. Uma agressividade que dura e que envelhece pode ser significativa, mais tônica ou pode ser uma agressividade tornada crônica que perdeu sua mordacidade e que persiste somente pela força da inércia. Estar sempre agressivo ao envelhecer pode querer dizer conservar um mau caráter ou ter perdido a capacidade de aprender a sabedoria, mas pode ser um sinal, como o sabemos, de conservação da vitalidade. Como se sabe também, a agressividade pode não exteriorizar-se e ser dirigida contra aquele que a engendra. Ela contribuiria, neste caso, para criar um estado depressivo.

Sabemos quanto são frequentes, com efeito, os episódios depressivos nas pessoas idosas. A auto-agressão poderia participar ainda mais d~retamente no envelhecimento; seria mesmo possível perguntar-se se envelhecer não seria uma forma de ataque contra si mesmo, de auto-destruição. No curso do envelhecimento, a agressividade pode ser uma demonstração das capacidades energéticas de uma força residual.

Mas, em suma, o envelhecimento das emoções não significa sempre o seu enfraquecimento, sua degradação: uma involução emotiva pode se constituir em seu aperfeiçoamento, em sua personalização autêntica.

Somos continuamente confrontados com o seguinte paradoxo: na plenitude da vitalidade parecemos ter ideais quase sobrehumanos, que a juventude deveria permitir transformar-se em apoteose incomensurável e nós fazemos projetos como se, fascinados pelo elan vital, quiséssemos construir uma vida especial e extraordinária, que seja totalmente nossa e, ao mesmo tempo, vencer ao ponto de suscitar a inveja e o interesse dos outros. Na realidade, se consideramos bem as coisas, nossa aspiração mais coerente é envelhecer e perscrutar o domínio do envelhecimento, que imaginamos ser quase ilimitado, vivendo, justamente, como uma garantia do sucesso da existência.

Fascinados e seduzidos por múltiplos modelos que nos são propostos e que buscamos construir ou ter prontos para nosso futuro, acabamos por fazer do envelhecimento nosso único paradoxo, continuamos a ser dominados pela ambivalência que se instala face ao envelhecimento e que nos deixa perplexos. O envelhecimento aparece-nos, em outros termos, como o meio de reunir um período de homeostasia, de equilíbrio e de estabilidade, se bem que através de sacrifícios biológicos, de limitações e de abdicações, seria possível, enfim, chegar à impressão de que o tempo pára. Este envelhecimento pode, entretanto, aparecer-nos como um risco contínuo, um estado de crise quase insegurança. permanente, o triunfo da instabilidade e da

II- Função Psicológica do Envelhecimento

Quando falamos de envelhecimento referimo-nos, em geral, a um problema global, ainda que o indivíduo se componha de órgãos diferentes e funções que só podem envelhecer de maneira diferente e variável. Qual é a parte de nós mesmos que envelhece mais lentamente ou mais tard~amente ?

Existem, é certo, células pertencentes a um dado órgão ou sistema que, por toda uma série de circunstâncias que não conhecemos bem, envelhecem de maneira desigual, mais ou menos lentamente.

Além disso, a velhice é um fenômeno visceral celular ou é um fenômeno essencialmente mental? É preciso igualmente considerar que o mundo envelhece no seu conjunto e nós com ele; por este fato o que parece ser a juventude de amanhã é, na realidade, um outro aspecto do envelhecimento do mundo; este será mais velho no futuro do que é hoje e do que foi ontem. Devemos ainda acrescentar que a velhice não é unicamente uma condenação que sofremos, mas também um estado que deve fascinar-nos, porque ele se prepara lentamente em nós. É, em suma, nosso futuro, nosso modo típico de reagir aos acontecimentos.

Observemos bem nosso organismo: o órgão considerado como velho seria menos importante em relação àqueles mais o mais jovens?

O órgão que envelheceu mais ou os órgãos que envelheceram mais poderiam revelar-se, pelo contrário, aqueles que se transformaram em órgãos mais importantes, mais válidos, mais provados, mais seguros, 'mais capazes no momento em que os órgãos ou as funções e os tecidos mais jovens poderiam, em definitivo, ser partes de nosso corpo ainda imaturos, menos seguros, aos quais nosso organismo, no seu conjunto, poderia conceder uma confiança restrita. Além do mais, no domínio do espírito, a idéia de que persiste antes, a idéia tenaz à qual parecemos ligados de uma maneira rígida cristalizada,não é aquela que permaneceu mais jovem, aquela que, de certa forma, não quis mudar, não quis envelhecer? No oposto, a idéia nova, aquela que talvez aceitamos com reticências, com desconfiança, seria, de certa forma, ..alguma coisa que inserimosem nós mais tardiamentee, por isto, uma idéia muito mais velha pelo fato de que ela só pertence agora ao nosso pensamento. Ela poderia ser em todo caso muito mais instável e susceptível de involução, do que uma idéia partida de longe, que amadureceu conosco, que se enfraqueceu e poderia constituir a persistência desta parte jovem de nós mesmos, que jamais desaparece completamente. Se a infância é considerada como um período favorável e fantástico que devemos irremediavelmente perder, o fato de liberar-se, de afastar-se da infância é, entretanto,vivido como um sinal de maturação e de progresso.Se a fraquezada criança, que necessitados cuidados e da proteçãodos adultos,constituium elemento de restrição para a criança mesma, o enfraquecimentoque encontramos na velhice parece redimensionar as pretensões excessivas do adulto maduro em matéria de afirmação e força, favorecendo o apoio sobre os outros, uma verdadeira troca recíproca. Desta forma o filtro do tempo permite as escolhas mais adequadas, as verificações e as contraprovas necessárias a toda experiência existencial válida.

O corpo e o espaço que nos cerca pertence-nos antes do que quando eles eram prova da espacialidade incondicionada da juventude com suas pretensões possessivas ilimitadas. Se, em certo sentido, o escoamento da idade pode constituir um constrangimento cronobiológico ao qual não podemos nos subtrair, em outro sentido ele é o caminho importante e necessário ao nosso aperfeiçoamento, ao nosso desenvolvimento psíquico e ao alargamento de nosso horizonte existencial. De toda maneira a involução não pode retirar-nos o tempo que possuímos, a quantidade de experiência adquirida e a certeza do vivido.

O passado é doravante nosso "ser" bem antes que o incerto futuro. O que nos precedeu só faz submeter tudo que nos chega a uma espécie de exame ou, de um certo ponto de vista, ele representa a demonstração possível, a explicação eficaz e efetiva de nosso desenvolvimento. Por conseguinte, a involução significa igualmente conservação,maturação, intensificaçãoe reforço ao mesmo tempo que pode ser enfraquecimento, lentificação.

Envelhecer quer dizer contemplar-se em um espelho, dar uma parada. Involuir acarreta recomeçar em uma outra direção, a repetir-se de maneira econômica.

O sofrimento é menos absurdo, a doença mais familiar, a surpresa menos surpreendente. As emoções são atenuadas pelo uso, as afetos são liberadas do desejo de conquista. A coragem tornase coragem de ser e o medo, sobretudo, um medo de si mesmo.

Muitas coisas tomam seu tempo na velhice entre as quais a sexualidade; a título de exemplo, a ereção faz-se mais lentamente no homem e o desejo de concluir o ato sexual é menos imperioso. Na velhice a vida está muito mais próxima de uma perspectiva panorâmica do sentido da escolha e o sucesso de nossa vida inteira. 

Desenvolver-se é uma maneira de esperar, de preparar, envelhecer é, em compensação, uma maneira de se preocupar. Sentimos nosso desenvolvimento como um dever da natureza em relação a nós. Envelhecer é, por outro lado, um presente que não merecemos, é agradável porque ele não nos é devido. É envelhecendo que o ser humano atinge seu mais alto grau de humanização. Não querer envelhecer é recusar o conjunto do que temos sido capazes de fazer e de obter. Pode-se pensar que a criança é ainda preservada da contaminação sócio-cultural, ao passo que o velho seria a vítima desta contaminação. É, entretanto, possível que o velho caminhe, estando pouco a pouco liberado das quotas e das diferentes influências culturais. Ele teria resistido a esta poluição cultural eventual, aceitando-a quando podia julgá-Ia útil e significativa e rejeitando praticamente o resto.

No simbolismo habitual tudo que vem primeiro goza de uma grande vantagem em relação ao que se segue. Neste sentido a infância é melhor do que a juventude, a juventude do que a maturidade e a maturidade do que a velhice. Entretanto, busca-se frequentemente revalorizar aquilo que se segue, busca-se salvá- 10, prometendo em relação àquilo que "vem após", vantagens das quais não se dispõe ainda e encoranjando as pessoas a renunciar, a sacrificar aquilo que vem primeiro para melhor saborear o que vem após. Mas o que "vem após", e que é sempre identificado com o previsível, implica inaceitavelmente na perda do que está em primeiro. O primeiro corresponde estruturalmente ao ser nele mesmo, a presença vital, enquanto aquilo que se segue, aquilo que "vem após" corresponde naturalmente ao futuro. E no ser, em sua existência imediata, que parece se situar a essência profunda da vida, ao passo que o futuro não é mais do que um "a se fazer" ou um "ser já feito" sobre a base daquilo que fomos precedentemente.

De sorte que se a experiência nos enriquece de elementos novos, se ela nos dá, pelo menos, a impressão da mudança, ela aliena, contudo, aquilo que a precede e, bem entendido, a enfraquece. A glorificação humana e social da inocência não se refere somente à falta de conhecimento, à inexperiência e à candura, ela refere-se igualmente a este defeito de contaminação em relação ao futuro e à modificação que assusta e engendra a noção de uma vida que se perde em se construindo. Todavia, a estrutura da existência em seu estágio inicial não é ainda provada nem assegurada quando a estrutura efetiva torna-se aquela que engaja-se no vivido e na maneira na qual este último se transforma: a estrutura do começo é potencial e, de certa forma, ilusória, a estrutura autêntica e individualizada só pode ser aquela que foi submetida à confrontação existencial. Por isto a posse do elan biológico primário não pode ser mantida sob pena de inutilidade e de absurdo: ela deve dialogar com a aquisição progressiva da experiência vital, aquisição que é perpetuamente colocada em questão pelo futuro, o estado estático é pior do que a morte, porque é a negação da vida. O tempo, este grande protagonista da existência, pode, por outro lado, ser entrevisto de maneiras muito diversas. Pode ser concebido como uma espécie de lugar onde se jogam os acontecimentos e onde se movem os seres. Este conceito é, em parte, sobreposto à noção de duração, uma espécie de local vital. O tempo pode ser igualmente visto como um simples coeficiente de transformação: as coisas modificam-se por causa do tempo e necessitam do tempo para se transformar. Mas o tempo participa também respectivamente dos conceitos de empobrecimento e enriquecimento que já temos considerado. Enfim, o tempo participa igualmente da impressão da identidade individual posto que cada um de nós possui, por sua própria identificação, esta-coordenação temporal que a qualifica e a orienta.

A partir daí onde se encontra a verdadeira força do ser humano? Do lado do impulso inicial que impõe a vida ou do lado do desenvolvimento e da atualização desta mesma vida? A decadência que seria ligada ao envelhecimento significaria então a decadência biológica ou a decadência do ser humano? O ser humano agarra-se a elementos que ele considera rentáveis, ele espera a conservação ininterrupta do elan inicial que ele crê frequentemente ter perdido. De outro lado, ele sabe que tudo aquilo que é considerado como rentável pode ser ilusório, o verdadeiro rendimento existencial pode encontrar-se, em compensação, em fatores julgados decadentes ou marginais. A satisfação pode representar um elemento de parada, de bloqueio, quando a abertura e a esperança são frequentemente ligadas a uma insatisfação relativa.

No fenômeno do envelhecimento percebe-se, além disso, a presença de uma certa irracionalidade associando-se ao absurdo de um vivido que parece progressivamente desprovido de seus utensílios mais válidos; esta irracionalidade pode inserir-se muito mais do que a racional idade na fervura desordenada que é um dos aspectos típicos da existência. Enfim, no envelhecimento situa-se a surpresa permanente de "sobreviver", surpresa relativamente fraca ou considerada como impossível no curso da juventude onde, ao contrário, a vida é sentida como um direito, como um fenômeno lógico. A estes fatores acrescenta-se a atitude descrita como sendo a sabedoria que força o ser humano a dar-se um sentido. Com a velhice, a realidade sofre inevitavelmente uma usura e um declínio funcional. Entretanto, sabemos que esta realidade que nos aparece tão sensata e incontestável; está submetida a interpretações subjetivas e a um relativismo constante. Por outro lado, o imaginário, a vida intrapsíquica do indivíduo deveria sofrer, em teoria, justamente por causa deste declínip da realidade, uma intensificação, uma espécie de superabundância compensadora. Em vez disto, a imaginação parece limitar-se, empobrecer-se no curso do envelhecimento. Não se sabe se isto é devido a uma falta de esforço destinado a fazer frutificar sua própria vida imaginária ou se esta limitação da imaginação é só uma impressão vista do exterior. A imaginação das pessoas idosas, embora reduzida, poderia encerrar uma força compensadora e uma intensidade emocional proporcionalmente mais elevadas em relação a estas fantasias em aparências mais variadas e mais abundantes dos jovens.

Uma possibilidade diferente de interpretar a realidade e sua confrontação com o imaginário pode aplicar-se com respeito à morte. Esta é geralmente encarada como uma tragédia, como a destruição desta existência que, de presente incompreensível, torna-se pouco a pouco para o homem seu próprio ser. Estando habituado a viver, o ser humano está sempre mais preparado para confrontar a existência: tomando consciência da presença da morte, depois de muito pouco tempo de vida, ele deve preparar-se já para a perda desta e, por conseguinte, para a morte. A morte, todavia, é um fenômeno que nos empurra para encontrar uma significação para a vida. Mesmo se, caminhando na existência, nós nos extraviamos e nos deixamos distrair por perspectivas menores julgadas práticas, o aparecimento da morte, quando ela se desenha no horizonte, faz-nos voltar para uma obrigação intrínseca, incita-nos a dar à nossa vida um valor mais profundo e fundamental do que aqueles que nos animaram na existência cotidiana.

É na esteira desta ambivalência e desta ambigüidade que buscamos descobrir e provar, através de múltiplos aspectos humanos, a antítese na qual situa-se a diversidade entre o que poderia chamar-se o bom e o mau velho.

O velho é considerado bom, o que quer dizer aceitável, quando não incomoda, quando é simpático e bem sucedido, quando ele manifesta algumas características de sabedoria, mesmo se elas não sejam sempre levadas a sério.

O velho bom permite-nos tranquilizarmo-nos porque ele se nos apresenta como uma pessoa que soube fazer frutificar a vida e tirar dela uma experiência que nos é também reservada. Esta sabedoria é frequentemente um equivalente de tranquilidade, de renúncia às paixões, uma espécie de anestesia e de autolimitação.

Para ser bom, o velho não deve somente ser sábio, deve igualmente ser sadio. Ele não deve nos preocupar com doenças, suas insuficiências brutais e imprevisíveis para desenvolvimento.

Ele deve saber manter-se ágil e autônomo. Deve saber seduzir-nos com sua capacidade de sobreviver e sua longevidade eventual. Tudo isto, com efeito, nos fascina e nos faz esperar amanhãs interessantes.

Em compensação, o mau velho é, em geral, um velho doente, um velho que nos culpabiliza, nos ameaça com uma assistência permanente ou com uma morte próxima. Além do mais, é um velho, a bem do respeito, incompreensível, posto que ele pode estar ferido pela tristeza, podendo, de repente, envolver-nos, angustiar-nos sem cessar, inquietar-nos profundamente.

É um velho fraco, que tem necessidade de apoio, um velho frágil que, já existindo um pouco no interior de nós mesmos, retirar-nos-á toda segurança referente ao amanhã. Entretanto, este velho mau pode aparecer-nos também como um velho diabólico, que não sabe desvencilhar-se das paixões, das mudanças, que continua competitivo e que pode, no fim das contas, tornar-se perverso e assaz egoísta; um velho insaciável sob todos os pontos de vista.

Por causa disto ele é um velho perigoso e insuportável, que não realizou em momento algum o processo de purificação que a velhice tinha deixado entrever para ele e que não parece ter renunciado a toda uma série de promessas que a vida parece não ter inteiramente cuidado. Um velho que não sabe suficientemente esquecer ou que não quer se lembrar o suficiente.

Tudo isto nos demonstra que uma parte do que se chama ou se descreve como sendo a velhice precisa ser descoberta, ser aclarada com uma luz mais apropriada e, de certa forma, ser inventada. Ela precisa igualmente ser valorizada à maneira de uma terra até então abandonada e incerta, que poderia revelar-se de uma plenitude insuspeitável. A velhice poderia mesmo assumir o papel da idade mais importante da vida.

Para retomar nossa divisão (nossa antítese hipotética entre bons e maus velhos) podemos perguntar-mo-nos se são, verdadeiramente os bons velhos, tal qual os concebemos e os maus velhos, os mais estéreis, os adaptados demais, os mais artificiais. E, no oposto, se não seriam os maus velhos os mais incompreendidos ? De fato, eles parecem os mais explosivos, os mais recalcitrantes em deixar-se fechar num esquema idealizado e estereotipado, em uma casa de velhos, um gueto, uma categoria bem estandardizada. Devemos nos perguntar desde então se devemos procurar envelhecer segundo uma orientação pré estabelecida, seguindo um sulco consagrado pela tradição ou deixarmo-nos envelhecer saboreando o envelhecimento a cada instante, com seus sobressaltos, seus incômodos e suas espantosas incoerências; um envelhecimento que advém, em parte, como queremos e porque o queremos, um envelhecimento que se descreve bem mais através de nossa personalidade do que pela contemplação de nossas lembranças e nossa capacidade de produção passada.

Não somos somente o nosso passado, aquilo que fizemos ou fomos, somos também, acima de tudo, nosso envelhecimento; para que ele seja nosso devemos nos esforçar em não nos limitar em suportá-lo como um peso que nos amassa e nos oprime. O velho verdadeiramente bom é provavelmente aquele mais bem sucedido em criar, ele mesmo, seu próprio envelhecimento.

No fundo não existe velhice normal.

O envelhecimento é a "doença" do ser, mas no sentido de dever colocar-se em causa, de sair das pretenções gratuitas, de uma progressão de sentido único. O envelhecimento é a única maneira de existir completamente; a única maneira, então, de ser "doente" de maneira séria e útil. Quanto as outras doenças, aquelas que são acidentais, freqüentemente a velhice as atenua, como as neuroses, as psicoses ou as lentifica, como o câncer.

Os velhos que não envelhecem, que permanecem iguais a eles mesmos, parecem perder sua verdadeira identidade, sua verdadeira personalidade.

Os velhos que se assemelham demais parecem ter recusado o aspecto marcante da individualidade que impregna normalmente o processo involutivo. Estes são, em suma, os velhos que traíram seu envelhecimento.

O rosto, parte mais individualizada do ser humano, não envelhece antes, digamos, do que o resto do corpo? De fato, não se pode negar que um envelhecimento que soube conquistar seu próprio envelhecimento, que tem, por assim dizer, escolhido, adquire sobre seu rosto uma forma particular de beleza ou, se preferirmos, um certo desabrochar em relação ao qual a beleza da juventude não é mais do que um esboço preparatório, um esboço ainda desprovido de originalidade.


Referência
Abraham G., Andreoli A., Simeone I., Valente Torre L. Vecchi
buoni g vecchi cattivi. Introduzione ad una gerontoloqia clínica.

Rome: CIC, 1981 (traduzido para o "francês por Armine Scheler).

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